Foram publicadas nestas colunas diversos conselhos práticos, receitas, etc., com relação a uma alimentação não apenas vegetariana, quer dizer, sem carne (nem a carne dos peixes), mas também vegana, que exclui também o leite, os ovos e geralmente também os demais produtos de origem animal. Nosso objetivo era o de mostrar que, neste terreno, existem atualmente várias soluções para substituirmos os produtos obtidos através da exploração animal – sobretudo os ovos, pois a grande maioria dos ovos que encontramos hoje em dia são oriundos dos aviários em bateria onde as galinhas sofrem uma das mais cruéis formas de exploração.
Há, entretanto, o outro lado da medalha. Ao falarmos sobre veganismo, e não simplesmente sobre vegetarianismo, parece que suscitamos o fato de desejarmos um « purismo ». Assim várias pessoas nos disseram que sentiram vontade « de ir além »..., após terem lido os artigos dos CAL (Cahiers Antispécistes). Quer dizer que sentiram vontade de ir além do vegetarianismo e se tornarem veganas. Muito bem; mas as pessoas podem « ir além » através de uma série de outras coisas, por exemplo: formar um grupo militante, organizar uma distribuição de panfletos ou uma conferência, colar cartazes, entrar em contato com a imprensa, organizar uma manifestação ou qualquer outra ação espetacular, refletir sobre uma argumentação para ser usada nos debates (é também para levar a este tipo de reflexão que os Cahiers Antispécistes existem!), pedir a uma livraria que pegue em consignação a literatura sobre a liberação animal, produzir este tipo de literatura... Há uma grande quantidade de coisas deste estilo que podem ser feitas para « se ir além »; sugerimos em alguns textos um certo número de modos de ação mas há várias outras idéias que podem ser desenvolvidas.
Um dos elementos essenciais do movimento de liberação animal é que esta não trata de uma simples questão de « moral pessoal », privada, mas de uma exigência política, relativa apenas a si própria, parecida com a exigência que animou os outros movimentos libertadores do passado e do presente. Quando escuto falar em « ir além » em simples termos de pureza pessoal (alimentar, de vestuário, etc.), tenho o sentimento que mesmo se no sentido absoluto realmente seja melhor efetivamente eliminar até o último miligrama de produtos de origem animal – que são quase sempre, em nossos dias, os produtos do sofrimento deles -, a vontade de colocar nisso tanta energia, sobretudo em uma situação na qual os militantes da libertação animal são tão raros e onde todos nossos vizinhos consomem dezenas de quilos de animais, equivale a se fechar em uma esfera privada e, de alguma forma, a abandonar a luta.
Eu não sou vegana estrita; em termos absolutos certamente seria melhor se eu trocasse a marca da minha margarina para encontrar uma sem soro de leite; ou ainda que eu recusasse sistematicamente o chocolate ao leite, que eu tentasse tomar menos remédios (que são testados nos animais ou que contém gelatina e outros excipientes de origem animal) quando estou doente; que eu vendesse meus agasalhos de lã; etc. Eu não tenho as mãos limpas; mas eu também penso que todos os animais que morrem todos os dias nos abatedouros desprezam o fato de saber se tenho ou não as mãos limpas.
Na sociedade onde vivemos a exploração dos animais é a coisa mais banal que existe; ela se encontra em todos os lugares. Nas revistas veganas inglesas muito se falou sobre a expressão « sem crueldade »; para os puristas, « sem crueldade, é sem crueldade ». Por exemplo, um vegano, para ser um vegano autêntico não deve usar lã, mas também não deve comer os corn-flakes da Kellog´s pois estes possuem um aditivo – a vitamina D- que é produzido a partir da lanolina (substância extraída da lã). Sim, há apenas 0,000 003 % de lanolina « mas não é a quantidade que importa »; pois apoiar uma empresa que, como a Kellog´s, insiste em utilizar uma fonte de origem animal não combina bem com um vegano » (carta de um leitor à revista Vegan Views n°54, pg. 11). Em outro lugar vimos que seria necessário banir o açúcar branco pois este é branqueado com carbono de origem animal; e o vinho, que contém sangue e extratos de peixe. Um outro número da Vegan Views menciona (com ironia) que até os espelhos contém sub produtos de animais e que um verdadeiro vegano evitaria então de deixar sua imagem ser refletida em espelhos.
Os critérios propostos chocam pelo formalismo. O mel é banido pois é um produto animal; mas o açúcar - se não levarmos em conta o problema levantado acima – é aceito, sem que se pense nos insetos mortos tanto no plantio quanto na colheita da cana. Algumas pessoas recusarão uma sobremesa de soja colorida com cochonilha (concentrado de insetos moídos); mas não hesitarão em pegar o carro e andar quilômetros suplementares para procurarem uma outra marca considerada mais vegana. Os insetos que serão esmagados ao longo do caminho não são levados em consideração, pois não serão ingeridos – as pessoas não estarão poluindo seus corpos (seus estômagos, se isso acontecer, basta cuspir!). Parece que as pessoas dão mais importância aos microgramas de vitamina à base de lanolina existente nos corn-flakes da Kellog´s do que às toneladas de carne que, como todo mundo, os empregados da Kellog´s comem - entretanto é também com nosso dinheiro que eles as comem.
Não existem produtos « sem crueldade » [1]. Existem apenas produtos com mais ou menos crueldade (e não há apenas a crueldade contra os animais, há também os produtos oriundos da exploração dos humanos). Entretanto eu não penso que nosso objetivo deva ser o de utilizar apenas os produtos « que tenham o mínimo de crueldade possível ». Se quisermos ser « os mais puros possíveis », nós não utilizaríamos mais as fotos por causa da gelatina usada nos filmes. Não poderíamos fazer cartazes por causa dos filmes das gráficas e talvez também algumas tintas. A militância se tornaria uma tarefa mais difícil. Inclusive os selos seriam também suspeitos (a cola não é de origem animal?). Mas devemos conseguir fazer escolhas, levando também outros critérios em conta e isso não é sempre fácil.
Se aqueles que combatiam a escravidão na América do século XIX tivessem desejado ser « puros » ou « o mais puros possíveis », eles deveriam ter renunciado à maior parte de suas roupas, feitas de algodão. Deveriam ter se deslocado o mínimo possível, para não usarem as estradas construídas com a mão de obra servil. Entretanto, parece claro que eles tinham razão de lutar assim em vez de se fecharem em um purismo paralisante.
O caráter puramente pessoal do purismo é o que mais me incomoda. Nossa luta exige, claro, de cada um de nós um engajamento pessoal; um carnívoro que se diz militante da liberação animal seria como um proprietário de escravos que se diz anti-escravagista. Entretanto, ainda que pessoal, um engajamento não deveria ser orientado para si, mas para a luta contra a exploração animal: tanto pelo fato de não financiar esta exploração quanto pelos atos que mostram esta recusa. O ato de comer carne talvez mostre simbolicamente que a pessoa deseje a continuação da exploração animal. Não se pode fazer carne sem matar animais. Por outro lado, andar em uma bicicleta cujo banco é de couro não possui o mesmo valor simbólico. A sela é de couro mas poderia ser de outro material. O mesmo, em parte, acontece com o fato de se comer ovos ou beber leite: podemos imaginar obter estes produtos sem causar sofrimento ou morte – ainda que isso não aconteça deste modo hoje em dia [2].
A pureza pode, apesar de tudo, ter suas vantagens. Paradoxalmente pode ser mais fácil tomarmos decisões « absolutas » que nos evitem os « riscos das tentações » (decidir algo para sempre pode ser mais fácil do que analisar o pró e o contra de cada situação). A pureza pode também servir para mostrarmos a possibilidade de vivermos sem causarmos qualquer tipo de exploração animal – pois imensa é a vontade de alguns de nossos adversários de acreditar que permanecemos vivos por causa das pequenas quantidades de produtos de origem animal que ingerimos [3]. A pureza também aumenta o número de vezes em que somos levados a explicar porque recusamos a exploração animal (é por isso que eu prefiro algumas vezes não recusar um prato que contenha leite ou ovos!). Enfim, ela diminui um pouco mais nossa participação nesta exploração.
Não é minha intenção de instaurar, através deste texto, uma exigência de « pureza ao contrário », ou seja, afirmar que um « bom anti-especista » deva ser... impuro. Eu creio que cada um deve decidir até onde ir neste campo, sem olhar do alto aqueles que são menos puros, e sem temer o desprezo dos que o são mais. Para mim, o passo essencial é o de pararmos de comer carne; este passo, para algumas pessoas em certas situações já exige bastante coragem.
Um outro problema é o dos remédios. Infelizmente eu acredito pouco na eficácia da maioria dos remédios da medicina « paralela alternativa », reputada por testar menos nos animais, e sobretudo na homeopatia [4]. A medicina paralela não é nem mais suave para os humanos nem é menos testada nos animais do que a medicina oficial; o aspecto positivo dela é o fato de utilizar, geralmente, apenas produtos conhecidos há muito tempo (e que não são mais testados) e de financiar menos as sociedades farmacêuticas que testam nos animais. Entretanto, ela oferece apenas uma gama limitada de produtos.
Isso não quer dizer que eu seja contra a vontade das pessoas de se curarem « de outras maneiras ». A medicina oficial é, freqüentemente, sinônimo de violência, inclusive para os humanos que estão sendo tratados. Algumas vezes a medicina paralela tem a vantagem de encorajar a auto observação, a reapropriação de seu próprio corpo de acordo com o tempo íntimo de cada um, encoraja a ser menos passivo face às afecções. Pessoalmente, me faria muito bem ter este tempo para mim – e é, com certeza, por preguiça que eu não o faço. Mas recuso a idéia que o fato de sermos a favor da liberação animal nos obrigue automaticamente a crer na eficácia da homeopatia, da iridologia, etc. Recuso também a idéia que um vegetariano deva comer « orgânicos », parar de fumar ou de beber, e assim por diante. Fumar faz mal para a saúde quer sejamos ou não partidários da libertação animal. Uma escolha não tem nada a ver com a outra.
[1] A expressão « sem crueldade » tem, além disso, a desvantagem de acentuar mais a ênfase na atitude psicológica que representa a crueldade do que o sofrimento dos animais.
[2] Sobretudo por causa deste valor simbólico nós damos importância à obtenção de uma fonte não animal da vitamina B12.
[3] Entretanto, mesmo o vegano mais puro, se não for vegano de nascimento, poderá ser acusado de « viver com essas reservas antigas ».
[4] Por outro lado não está claro que a homeopatia não seja « testada nos animais », pelo menos no tocante à pesquisa, pois esta é fundada na observação dos efeitos das substâncias usadas em doses altas.