Nos textos que seguem, não introduzimos o neologismo «senciência». Creio que no futuro dele faremos uso e tentaremos popularizá-lo, da mesma forma que o adjetivo associado («senciente»). É que em português nos falta uma palavra para designar a coisa mais importante do mundo, talvez a única que importa: o fato de que certos seres têm percepções, emoções e que, por conseguinte, a maioria dentre eles (todos?) têm desejos, objetivos, uma vontade que lhes são próprios. Como qualificar esta faculdade de sentir, de pensar, de ter uma vida mental subjetiva? Os anglo-saxões têm o substantivo sentience (e o adjetivo sentient para designar isso, os italianos o termo senzienza (adj. senziente). Em português, não temos o equivalente exato. Temos diversas palavras que remetem à senciência, mas cada um deles tem o inconveniente de ser ou polissêmico, ou de ser um pouco redutor, evocando de maneira privilegiada uma dimensão da vida mental. Nós temos:
- a palavra sensibilidade, mas se diz também de um indivíduo que ele é sensível, para designar o fato de que ele é mais emotivo do que a média de seus congêneres sencientes;
- a palavra consciência, mas o termo também tem o sentido mais restrito de consciência moral, de faculdade de fazer julgamentos sobre o bem e o mal;
- a palavra espírito, mas ela evoca a dimensão cognitiva de maneira privilegiada à emotiva da vida mental: o pensamento, a razão (outrora, também se fazia uso do termo entendimento); ainda por cima, a palavra espírito inclui, às vezes, a idéia de que se trataria de uma realidade sobrenatural ou alheia ao mundo físico.
É pena que as palavras veiculem uma divisão da experiência subjetiva, ratificando dissociações que mereceriam ser questionadas. Existe fundamento em sustentar que o pensamento, o raciocínio, pertencem ao registro da sensibilidade: quando, ante uma demonstração matemática, pensamos «Isto está errado», errado é um sentimento ao qual não pode ter acesso um artefato não-senciente, mesmo se ele opera no campo das matemáticas. Também existe razão em sustentar que a sensação implica o julgamento (bom, mau), que é o fundamento da consciência moral.
Também é pena que não tenhamos o equivalente do inglês feeling, que em seu lugar sejam obrigados a escolher entre as palavras sensação (quente, fome...) e sentimento (amor, tristeza...), a primeira com uma fragrância de «físico», «corporal», e a segunda com uma fragrância de «psíquico», «espiritual». Ou talvez o problema não esteja tanto nas palavras (a raiz é efetivamente «sentir» em ambos os casos), mas antes na vontade tenaz de fazer jogos de palavras, para atribuir aos animais uma senciência que não é uma única. Uma vez, ouvi alguém dizer numa conversa: «os animais sofrem», acrescentando depois, como para se emendar: «no final das contas, pelo menos eles conhecem um sofrimento puramente físico». O sofrimento «puramente físico» (por oposição a «psíquico» ou «psicológico»), isso não existe, não é o sofrimento. As sensações são sentimentos.
Parece-me que valeria a pena investir numa reflexão crítica sobre este recorte do mental, que veiculam não somente o vocabulário, mas setores inteiros da nossa cultura: recusar a validade das divisões estanques entre as faculdades da alma tem implicações importantes para a causa animal. A alma (do latim anima), eis ainda uma outra palavra de que dispomos, a mais bela de todas: a própria etimologia indica que os animais são os seres que têm uma alma! Infelizmente, é quase impossível empregá-la sem se munir de uma carrada de aspas e de prudência, de receio de que o auditório venha a acreditar que se lhe esteja fazendo um discurso religioso, tanto o uso se estabeleceu no sentido de reservá-la para esse registro.
Senciência, portanto!
Após o número 23, especialmente dedicado à sensibilidade, após diversos artigos consagrados ao mesmo assunto em números anteriores [1], os Cahiers consagram um novo dossiê à consciência animal, e provavelmente retornarão a este tema em números posteriores.
Por que fazer da senciência um tema prioritário? Porque quando os humanos perceberem plenamente que os animais são sencientes, quando eles tiverem sido despojados de todas as astúcias mentais que lhes permitem esquecê-lo, ou mentir a si mesmos sobre a realidade da consciência animal, eles não poderão mais perseverar friamente na barbárie em relação a eles. A proposição «Os animais são sencientes» não é senão descritiva; ela não é a injunção de nada. No entanto, o simples fato de sentir, compreender, ter presente no espírito, que esta proposição é verdadeira, cria uma incitação no sentido de mudar de comportamento para com os bichos: é difícil fazer mal a alguém com conhecimento de causa quando não se tem mais os meios de se tornar surdo e cego a seu sofrimento.
A força da mensagem «Os animais são sencientes» também se prende ao fato de que ela pode ser veiculada por toda a parte no movimento animalista. Ela pode ser um tema federativo, que torna o conjunto mais audível, mais visível na sociedade, aquele que faz com que além do campo de ação e das orientações de cada um, se perceba o sopro de uma exigência forte, insistente, de prestar atenção aos animais.
No dia 25 de abril de 2005, Joyce D’Silva, diretora do CIWF, dirigia aos colaboradores dessa organização uma recomendação [2] que poderíamos fazer nossa:
Façam referência à senciência animal cada vez que puderem, ao se comunicarem, seja nos seus correios postais ou eletrônicos, seja nos documentos oficiais, dirigidos aos governos, aos políticos e aos intelectuais. Por favor, conservem isso no espírito. Já percorremos um longo caminho desde que lançamos esta campanha em 1988 – todo o mundo pensava então que estávamos loucos ao falarmos de senciência animal! Mas ainda nos resta um longo caminho a trilhar, e é verdade que quanto mais utilizarmos este termo, tanto mais ele penetrará na consciência geral da humanidade.
Reconhecer a sensibilidade animal certamente não é tudo. Ter consciência da existência das necessidades e aspirações de todos os seres sencientes não nos diz o que fazer. Parece-me improvável que se possa contentar em transpor os preceitos morais elaborados quando a preocupação era unicamente com os humanos; não sabemos ainda o que é uma ética não-especista. Mas reconhecer a sensibilidade animal é a condição para querer construir e aplicar esta ética, a condição para que procuremos saber o que é bom de se fazer de um ponto de vista verdadeiramente universal, aquele que engloba todos os habitantes sencientes deste mundo.
Não é uma questão «de antes» e «de após». Não vamos começar por generalizar a consciência, nos humanos, do fato de que os animais são sencientes, para em seguida elaborar uma ética completa, adaptada a este conhecimento, e enfim somente traduzi-la em reivindicação política de mudanças concretas – isto seria transferir o melhoramento da condição animal para o final dos tempos. Trata-se de dizer que é preciso atribuir a maior importância, em tudo o que fazemos hoje, à afirmação factual da senciência animal. Ainda que, enquanto tal, esta afirmação nada preconize, é ela que dá força, audiência, às exigências éticas e políticas em favor dos animais, formuladas com base no conhecimento – certamente imperfeito – que temos hoje das mudanças possíveis e desejáveis.
O dossiê «consciência animal», incluído neste número dos Cahiers, é mais especificamente consagrado à senciência nas ciências ou na filosofia, porque é lá que se encontra um dos obstáculos à atitude de levar a sério a sensibilidade animal. A ambição do dossiê é dupla:
- fazer saber que a compreensão da consciência permanece um problema não-resolvido, e que isso não é anódino para a causa animal;
- incitar a procurar os meios para que as lacunas dos nossos conhecimentos na matéria não possam ser utilizadas para negar a senciência animal, e fornecer desde já algumas ferramentas para esta finalidade.
Estes dois temas estão no cerne do artigo «A ciência e a negação da consciência animal» (David Olivier, Estiva Reus). Mais geralmente, todos os textos reunidos neste dossiê fazem uma contribuição para aquilo que é o seu objetivo.
Tomamos emprestado ao blog de Jane Hendy um testemunho intitulado «No campo do inimigo», porque ele ilustra a maneira pela qual certos cientistas fazem uso de sua autoridade para negar o sofrimento animal. É uma atitude que não é excepcional entre os «peritos em bem-estar», isto é, em pessoas que detêm um poder para favorecer ou frear reformas destinadas a reduzir o mal-estar nos locais de criação.
O livro Through Our Eyes Only (Apenas Através dos Nossos Olhos), de Marian Stamp Dawkins, cujo resumo abre este dossiê, é uma obra de referência no domínio da consciência animal. Pode-se lê-lo pelos numerosos exemplos que ele fornece de comportamentos complexos em indivíduos de diversas espécies. Mas não se trata de uma coletânea de estórias sobre a vida dos animais. As informações que ele fornece são postas a serviço de uma problemática que se poderia resumir da seguinte maneira: como se pode, ao mesmo tempo que se reconhece que a consciência permanece um enigma, e sem trair o rigor científico, sustentar que existem boas razões para crer que os animais são conscientes?
Enfim, Agnese Pignataro, em «O elo entre sensibilidade e pensamento na crítica do automatismo animal de Descartes: Bayle, La Mettrie, Maupertuis», nos faz descobrir o que filósofos diziam da senciência animal nos séculos XVII e XVIII. Constituiria um erro deter-se em algumas hipóteses biológicas antiquadas destes autores, para concluir que o conjunto está obsoleto. A hipótese cartesiana de uma sensibilidade mecânica, de uma «sensibilidade» sem sensações, não está morta, ela assumiu novos aspectos. E aquilo que objetavam os contraditores de Descartes em seu tempo não está tão longe, tanto em sua riqueza, quanto em suas insuficiências, do que se poderia dizer hoje em dia.
[1] A sensibilidade dos peixes (CA n° 1 e 2 (Tom Regan, CA n°8), a vida mental dos animais por ou de acordo com DeGrazia (CA n°18 e 19)
[2] Esta mensagem de Joyce D’Silva sucede ao colóquio From Darwin to Dawkins: the science and implications of animal sentience (De Darwin a Dawkins: a ciência e implicações da senciência animal), organizado em Londres pelo CIWF nos dias 17 e 18 de março de 2005.