O artigo aqui reproduzido é a versão levemente modificada de um texto publicado em abril de 1991 na revista Informations et Réflexions Libertaires, na seção «Anti-especismo» que nela mantínhamos.
Embora necessária, a argumentação racional a respeito do especismo tem um certo travo frustrante. Afinal, os nossos adversários não se preocupam muito em procurar argumentos sólidos; e pouco se preocupam em examinar os nossos. Para eles, o especismo dispensa justificativas racionais. Recentemente me aconteceu de quase suplicar, de dizer (a um anarquista, aliás): «Mas me diga por quê, me dê um só argumento, porque é claro que você acha que o sofrimento das galinhas em gaiolas é um assunto secundário…» A única resposta dele: «Para mim, é». Por quê? Porque sim. O caráter evidente do especismo, o fato de que a imensa maioria dos seres humanos estão do lado dos opressores, é o obstáculo principal que o anti-especista enfrenta.
Trata-se, mais uma vez, de estar do lado daqueles que são desprezados e oprimidos – sabendo que o desprezo respinga sobre quem os defende. Houve um tempo em que o branco defensor de «negros» podia ser tratado como um «negro». É relativamente fácil hoje em dia ser anti-racista ou anti-sexista na França, pelo menos na opinião; nem sempre foi assim. Hoje, pelo menos na esquerda, é o anti-racismo e o anti-sexismo que ficaram evidentes, quase lugares-comuns que se passam por argumentos. A nova direita ficou com o belo papel, diante de um anti-racismo que à pergunta «Por quê?» respondia «Porque sim», de, por contraste, parecer gente que pensa.
No entanto, em nível mundial e no decorrer da história, é o racismo e não o anti-racismo que, assim como o especismo e o sexismo, é e sempre foi o pensamento dominante. A opressão e os massacres inter-étnicos são comuns na história passada e presentes na história de quase todos os seres humanos. Se muita gente hoje pode parecer que faz parte do campo anti-racista, é, antes de mais nada porque se opõem ao racismo dominante, o da cultura ocidental, que apaga as suas diferenças e a sua cultura no que ela tem de melhor e também de pior. Sabemos muito bem que a cultura kanake é, no conjunto, sexista, mas psiu! isso não deve ser dito. É preciso «respeitar a cultura como ela é». Não dizer nada é respeitar as pessoas?
Diante da imensa predominância do racismo, do sexismo e do especismo, não temos de nos contentar em nos escandalizar e nos referir às «evidências», mas sim refletir e argumentar, sem medo de estar do lado dos «negros», das mulheres ou dos cachorros.
Especismo: o especismo está para a espécie assim como o racismo está para a raça e o sexismo está para o sexo: uma discriminação baseada na espécie, quase sempre a favor dos integrantes da espécie humana (Homo sapiens).
Animais: a linguagem não é neutra e a nossa língua comum chama de «animais» todos os animais exceto os seres humanos, pondo assim uma barreira entre seres tão próximos quanto um homem e um gorila, e colocando no mesmo saco um gorila e uma ostra. De acordo com o uso científico, amplamente justificado, chamarei de «animais» todos os animais, humanos ou não, e de «animais não humanos» os que não tiveram a honra de ser «bem nascidos».
Sustento que não pode haver nenhuma razão — com exceção do desejo egoísta de preservar os privilégios do grupo explorador — de evitarmos estender o princípio fundamental da igualdade de consideração dos interesses aos membros de outras espécies.
Peter Singer, Animal Liberation, 1975 [1]
É preciso ser anti-especista? Bem, é preciso ser anti-racista? É evidente que sim? Não é evidente para todo mundo; e não parece que todos os anti-racistas sejam anti-racistas pela mesma razão. A minha posição é que o anti-racismo não se justifica porque (quase) todos os seres humanos sejam igualmente inteligentes, nem porque tenham linguagem articulada, nem porque sejam sociais etc.; o anti-racismo e o anti-especismo se justificam porque um ser senciente e oprimido sofre e que o sofrimento e o bem-estar de todos os seres sencientes, ou seja, suscetíveis de sofrer ou de serem felizes, têm a mesma importância e devem, conseqüentemente, ser levados em conta com peso idêntico.
Sou tão «defensor dos animais» quanto aqueles que lutavam contra a escravidão dos negros eram «defensores de pretos», como os racistas os chamavam; defendo os animais oprimidos, humanos ou não, não por capricho, não por vocação, não porque eu «ame os animais» como outros «amam as flores»; defendo os animais e, especificamente, os animais não humanos porque a minha intenção é defender todos os seres sencientes, sejam quais forem; porque o único critério que justifica levar em conta os interesses de um ser é que ele tenha interesses e porque, como explicarei no próximo IRL, o fenômeno da sensibilidade limita-se aparentemente aos animais, sendo que as plantas não teriam sensações nem interesses. A minha oposição ao especismo é a oposição a uma ideologia que serve para justificar o sofrimento ignóbil e a morte que a quase totalidade dos humanos infligem sabidamente, deliberadamente, quotidianamente, a milhares de seres tão sencientes quanto eles.
Os argumentos racistas, na maioria dos casos, não passam de maus pretextos; mas isso não nos dispensa de examiná-los. Não basta denunciar os racistas malvados; não sendo possível suprimi-los, é preciso convencer. Além disso, no caso do especismo o papel de malvado é de quase todos os humanos, que usam os mesmos argumentos que os racistas para justificar a supremacia que atribuem a si mesmos.
O racismo e o especismo são ideologias estreitamente interligadas e a sua semelhança seria evidente para todos se não fosse porque exatamente os anti-racistas são, na maior parte, especistas e, portanto, têm grande interesse em não percebê-lo. A vontade que têm de combater o racismo sem pôr em perigo o especismo leva-os a querer defender a todo custo posições indefensáveis que apresentam, contudo, como essenciais para o anti-racismo. Como para eles a idéia da igualdade dos animais é impensável, é contra os outros animais que querem basear a igualdade humana.
Os franceses primeiro! | Os humanos primeiro! |
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Deus deu a superioridade aos brancos. | Deus deu a superioridade aos humanos. |
Alimentamos e protegemos os negros. | Alimentamos e protegemos os animais. |
Os negros são menos sensíveis do que nós. | Os animais não sabem que sofrem. |
Os negros dão pouco valor à vida. | Os animais não sabem que vamos matá-los. |
Os negros são crianças grandes. | Os animais só agem por instinto. |
Os indígenas guerreiam entre si. | Os animais comem-se entre si. |
Os negros parecem todos uns com os outros. | Os animais não têm personalidade. |
Racista, eu? Eu tenho um amigo negro. | Eu amo os animais, não como carne de cavalo. |
Bater na mulher é uma opção pessoal. | Comer carne é uma opção pessoal. |
Quando o anti-racista fala desta igualdade humana, o que quer dizer? Na matemática, dizemos «Pau = Jean» se são dois nomes para a mesma pessoa. Não se trata disso. Os negros e os brancos em geral não são iguais na cor da pele, já que exatamente ela é que é diferente. A igualdade de que fala o anti-racista se opõe à desigualdade de tratamento de que alguns são vítimas por causa da cor da sua pele.
Mas a própria expressão «desigualdade de tratamento» não é suficientemente clara. Se eu fosse médico, talvez tratasse de forma diferente negros e brancos: como a pele negra absorve menos sol, os negros de um determinado país arriscam-se menos a ter câncer de pele. Constatar isso não é racismo, assim como não seria, se fosse o caso, constatar que uma certa cor de pele só tem vantagens sobre outra. O anti-racismo não pode basear-se sobre a hipótese arriscada da distribuição igualitária dos favores da «Mãe Natureza» entre os seus «filhos», porque este tipo de hipótese, como veremos, não tem razão nenhuma para ser verdadeira e, na maioria dos casos, é falsa.
Por outro lado, seria racista com toda a certeza, atribuir mais ou menos importância aos interesses — à saúde, por exemplo — dos negros do que à dos brancos. Seria racista dizer: a cor da pele de um ser justifica desfavorecê-lo, ou seja, dar menos importância aos seus interesses.
Se fosse esta a posição dos racistas, se só se baseasse na cor da pele, seria fácil de contradizer; mas não é assim. Li uma história, há alguns anos, sobre uma branca negra sul-africana. Uma doença deixara toda negra a pele desta senhora branca. A vergonha diante dos vizinhos! Foi necessário, para que pudesse subir no ônibus dos brancos etc., que as autoridades lhe dessem uma carteira especial atestando que, embora fosse negra, ela era branca.
Portanto, para os racistas, não é a cor da pele que justifica a discriminação. Neste caso, o que justifica a discriminação? O que então diz o racismo? Para contradizer uma ideologia é preciso que ela seja dita; e o poder da ideologia racista deve muito, sem dúvida, ao fato de que nunca é verdadeiramente dita, e portanto nunca verdadeiramente contradita.
Para o racismo é muito importante que a fronteira que traça o deixe do lado bom definitivamente. A raça é um bom critério para isso, já que quem nasce branco fica branco, salvo casos excepcionais. Mas ter uma fronteira não basta, é preciso ainda que a definição desta fronteira pareça justificar a discriminação. A cor da pele é um critério frágil demais; é preciso dar substância, dar espessura à própria idéia de raça. Um negro deve ser negro até os ossos. A raça de um indivíduo deve ser percebida como a sua verdade profunda, como a sua natureza. Negro ou branco, um negro nascido de negros tem de ser um negro. De sangue negro. O racista não justifica a discriminação pela cor da pele. Ele fala da cor, mas na verdade, para ele, importa a natureza, da qual a cor não passa de sinal.
Se o racismo se baseasse em diferenças reais, a sua intensidade seria proporcional à intensidade delas; mas a violência do anti-semitismo nazista mostra o contrário. A quase inexistência de diferenças visíveis entre judeus e «arianos» era simplesmente um sinal a mais, o sinal da duplicidade dos judeus. Os nazistas, ao falar do «nariz judeu», não falavam da «forma de nariz que os judeus apresentam com mais freqüência que os outros»; o «nariz judeu» não era simplesmente o nariz dos judeus, era o nariz que sinalizava a essência judia, e era esta essência, esta natureza que, aos olhos dos nazistas, justificava o homicídio.
Dizem também que o rei é rei porque tem uma coroa sobre a cabeça, sabendo que muitas vezes ele não a usa e que não é por causa dela que ele é rei; para o monarquista, o rei é rei porque é de sangue real, de natureza real; a coroa é só um sinal.
Quem quer que possa ser sinal de uma natureza pode ser interpretado como tal. É por isso que as discussões com os racistas são tão frustrantes. O racista não se dá ao trabalho de examinar e produzir argumentos sólidos; para ele, todo argumento é superficial, só diz respeito aos sinais, não atinge a natureza, porque a natureza não precisa de argumentos. A cor, a altura (os negros são pequenos demais, ou grandes demais, depende da região), o sotaque, a forma do nariz, tudo isso que o racista quer discutir ele não leva a sério na discussão: para ele, de qualquer modo, a natureza permanece.
Para o racista, é a natureza dos seres que justifica a discriminação: literalmente, a afirmação da sua diferença. Não há necessidade de postular a inferioridade; entre seres de natureza diferente, toda comparação é impossível. O apartheid é o desenvolvimento separado: cada um no seu lugar. O racista sul-africano negará que os negros sejam desfavorecidos: como são de natureza diferente, isso não faz sentido. As favelas são para os negros o que as habitações confortáveis são para os brancos. Por mais espantoso que pareça, aposto que os mercadores de escravos do século XVIII negavam que, para eles, os negros fossem inferiores; porque, por mais espantoso que pareça, ouvi muitos comedores de carne (anarquistas, é claro) negarem que, para eles, os «animais» fossem inferiores — «não, inferiores não, diferentes».
O discurso sexista também se baseia explicitamente na afirmação da existência de duas naturezas diferentes, feminina e masculina, e no elogio da Mulher, da Mãe, da Esposa, daquela cujo bem-estar e honra é fundar nações lavando as panelas. «Eu amo as mulheres!», diz o sexista (ou «as gatas», ou «as potrancas»).
Do popular «não sou racista» ao «elogio da diferença» da nova direita, é sempre a idéia das diferenças de natureza que está por trás do racismo e do sexismo. E estas ideologias são falsas, não porque a pele branca seja «igual» à pele negra, mas porque esta natureza simplesmente não existe. Mas são ainda mais plausíveis porque quase todo mundo, em segredo, aceita o seu princípio e, acho eu, aceita porque a sobrevivência do especismo depende disso. Para manter o especismo, todos aceitam a idéia de uma natureza animal e todos, inconscientemente, aceitam, portanto, a idéia de uma natureza humana. E é aí que começa a ginástica intelectual dos anti-racistas especistas.
Mesmo princípio, mesmo discurso: «Não sou especista» e «os animais não são inferiores, são diferentes». «Serem comidos é o seu papel natural». O sinal desta natureza é que eles se comem uns aos outros. Assim são felizes: os leitões sorriem na vitrine das lingüiças.
É possível ser anti-racista e ao mesmo tempo sexista, é possível ser anti-racista e anti-sexista e ao mesmo tempo especista. Você pode muito bem me dizer: «tudo isso é verdade, mas os animais não dá para comparar: os seres humanos são iguais, mas os animais são diferentes».
E há um monte de diferenças entre o homem e o «animal»! É que ninguém poupa os meios de listá-las, como atesta esta tranqüila declaração:
Por muito tempo os moralistas, os filósofos e, mais tarde, os pesquisadores de ciências humanas tiveram como principal objetivo rejeitar toda inclusão do Homem no mundo dos animais ou, pelo menos, encontrar-lhe uma dimensão específica que o permita sair de uma família vergonhosa, de uma promiscuidade embaraçosa.
J.-M. Bourre, Diététique du cerveau (Dietética do cérebro)
Mas os seres humanos também são diferentes uns dos outros, todos sabem muito bem disso. Quando se diz que são iguais, só se diz uma coisa: que são iguais por natureza. E que os «animais» são diferentes deles, não pelo número de patas, mas por sua natureza.
«A razão é própria do homem». A «razão» é o sinal dominante para o especista, e é por isso — e unicamente por isso — que vou demorar aqui refletindo sobre a questão da igualdade da inteligência, questão que, de fato, reconheçamos, preocupa-me pouquíssimo. É, pelo contrário, uma questão que tem agitado muito os especistas racistas e anti-racistas.
Para alguns, a inteligência é o sinal da existência da alma, e a alma é a natureza dos seres humanos. Mas para os outros, o que é a natureza dos seres humanos?
Os porcos sorriem nas vitrines das charcuteries (açougues especializados na venda de carne de porco e embutidos), mostrando muito bem que o seu papel, a sua vocação íntima, a sua natureza, é virar presunto.
A natureza dos seres já serviu para justificar muitas coisas: o racismo, a guerra, a ordem social estabelecida. «Ser de direita é pensar que o Homem tem uma natureza imutável» (Le Pen, citado de memória). Para os cristãos, a alma vem de Deus; para os outros, a natureza dos seres vem da Natureza, do Deus Natureza que todos adoram e do qual os ecologistas são os sacerdotes. A natureza de um ser seria o seu «inato», o que a Natureza lhe deu antes do nascimento.
Os de esquerda não podem aceitar deste jeito o discurso sobre a natureza humana; eles dizem: «o ser humano veio da natureza, mas ela se apagou, deixando o campo livre ao que é propriamente humano, à História, à Cultura, ao Social; o Homem continua a ser um animal em suas funções animais; nas suas funções elevadas, como a inteligência, é radicalmente outro.»
Assim, para eles, a natureza do Homem acha-se definida pela ausência de natureza; os «animais» é que têm uma natureza — cada «animal» segundo a sua espécie, portanto, antes de tudo, têm a «natureza animal» = a natureza de ter uma natureza. E se isso vem a basear a igualdade humana sobre o esmagamento dos outros animais, não é por acaso; é que na esquerda todos são anti-racistas, mas principalmente não são anti-especistas. A verdadeira crítica da noção de natureza de um ser, verdade profunda e papel atribuído pela Natureza, esta crítica que eles evitam fazer minaria o racismo — mas também o especismo.
O anti-racista especista tem este problema: justificar o especismo sem justificar o racismo; manter a idéia de natureza, baseada no nascimento; a idéia de que a Natureza deu ao Homem a mais elevada das origens, a natureza de ser livre (nada de «inato» abaixo da cintura). Aos «animais», pelo contrário, deu a natureza de escravos submetidos ao instinto. O racista não tem este problema; o Branco e o Negro, o gato e o camundongo, cada um tem a sua natureza, o seu lugar e o seu papel na harmonia natural e social. O racista pode, com bem mais facilidade que o anti-racista, se fazer de paternalista e militar na «defesa animal», em prol de um bom tratamento dos animais de corte.
Com o grito de «A Natureza está conosco», os especistas racistas e anti-racistas debatem o «inato» e o «adquirido», brigando sobre os sinais: os seres humanos têm todos a mesma inteligência? E sobretudo: as diferenças de inteligência são inatas? A hierarquia entre seres humanos é intencional por Natureza? Na pesquisa dos sinais os antigos interpretavam o fígado das vitelas, os modernos interpretam o nosso cérebro.
A crença traz a cegueira e este debate pode durar. Mas para quem não é cego a resposta é logo avistada: 1. os seres humanos não são mais iguais na inteligência do que no resto; 2. a inteligência resulta, como todas as características do ser vivo, de uma conjunção de causas genéticas e ambientais e, portanto, os genes podem provocar diferenças de inteligência. Estes fatos são do conhecimento de todos. E se justificam o racismo, então o racismo é justo e o especismo também. Se não justificam o racismo, então nada justifica nem o racismo, nem o especismo.
Os sinais que mostram a presença da alma, segundo o Abade Bouvet, em Premières Notions d'instruction religieuse et Leçons de choses religieuses (Primeiras noções de instrução religiosa e lições de coisas religiosas), 1938.
Não é que eu tenha especificamente de definir a inteligência. Se preferem não falar dela já que não pode ser definida, então não falemos dela, nem para comparar os seres humanos entre si, nem para comparar os seres humanos com os outros animais. Por outro lado, podemos muito bem falar dela sem precisar de uma definição sólida. Não tenho necessidade de uma definição exata do comprimento do pescoço para comparar o pescoço das girafas com o meu. E por pouco que se queira dar pouco sentido à palavra, é claro que alguns seres humanos são mais inteligentes do que outros.
Existem numerosos seres humanos com profunda deficiência mental. Talvez me digam, pensando em poupá-los do desprezo, que são inteligentes à sua maneira. Mas se quiserem dizer isso, não pode ser com o sentido com que a palavra «inteligência» é empregada nos debates sobre a sua igualdade em negros e brancos.
É difícil comparar a inteligência de um gato e de um cachorro e até de um ser humano deficiente e um cachorro; mas é claro que, seja qual for o critério que quisermos adotar, há seres humanos menos inteligentes que a maior parte dos cães.
Se a inteligência dos seres humanos justifica que não sejam tratados como cachorros, como tratar os seres humanos que são menos inteligentes do que cachorros? Mal, com certeza, mas menos mal do que tratamos os animais não humanos. Os deficientes nos fazem pensar um pouco demais nos «animais», assim como aquela branca tinha vergonha de se parecer com uma negra; mas para os especistas, racistas ou não, a inteligência não passa de um sinal, o que importa é a natureza: os deficientes «são seres humanos assim mesmo». Seria considerada escandalosa a idéia de cortá-los para pesquisas ou de matá-los e comê-los — o que acontece todos os dias com milhões de outros animais.
A existência de seres humanos deficientes mentais basta, por si só, para justificar o meu entre título. Vão me dizer que o debate trata da inteligência de negros e brancos. Esquecemos facilmente os deficientes, «casos marginais», um pouco como esquecemos os não humanos: eles não fazem manifestações de rua. Mas o caso deles é pertinente: se os especistas racistas e anti-racistas debatem a inteligência de brancos e negros, é porque para eles a inteligência tem relação com o direito ao respeito; segue-se que, para eles, os deficientes só têm direito ao desprezo.
Para os negros e os brancos (ou os franceses e os belgas, os brasileiros e os argentinos), as coisas são menos claras. Só se pode falar da média; para os indivíduos, a questão está resolvida, já que em cada grupo há deficientes mentais e outros que não o são. Mas média de quê? Existem testes de QI; podem ser contestados, podem-se criar outros critérios, mas salvo acasos improváveis, nenhum dará a mesma média em dois grupos dados. Podem-se talvez encontrar critérios que dêem aos negros uma média superior aos brancos e outros que dêem o contrário; mas sem decidir que o critério exato criado para dar as mesmas médias é, por definição, «o bom teste», sempre teremos o seguinte: qualquer que seja o sentido da palavra, a inteligência de dois grupos não é igual.
Ninguém contestará que a diferença de inteligência entre um cão e um ser humano tem causas genéticas e, portanto, que há uma relação entre a inteligência e os genes; mas é entre humanos que queremos que os genes se apaguem. No entanto, ali dizemos o contrário: há os «casos marginais».
Numerosas deficiências mentais têm causa genética. Por exemplo, um determinado gene faz nascer seres humanos fenilcetonúricos. Eles se tornam deficientes mentais profundos e morrem jovens, só que hoje conhecemos um regime alimentar que permite que se desenvolvam como todo mundo. Daí a minha afirmativa: a inteligência resulta, como todas as características, de uma conjunção de causas que podemos classificar, se quisermos, em genéticas e ambientais. Para os fenilcetonúricos, conhecemos um ambiente (regime alimentar) que permite que a sua inteligência se desenvolva; para os outros seres humanos, assim como para os cachorros, não conhecemos. Mas em que isso muda a sua natureza? Um fenilcetonúrico, por natureza, está mais próximo de um ser humano normal ou de um cão? A sua natureza depende dos seus genes ou do seu regime alimentar? Ou a natureza dos seres não é uma quimera?
E os brancos e os negros? O genoma influencia — ninguém o contesta — a pigmentação dos negros. Um grande número de negros vive em regiões pouco ensolaradas, onde esta pigmentação pode provocar uma produção insuficiente de vitamina D, donde o risco de raquitismo. É possível que o raquitismo atrapalhe o desenvolvimento da inteligência. Neste caso, alguns negros são menos inteligentes por causas genéticas e a média de inteligência dos negros é reduzida por causas genéticas.
Trata-se aqui de uma hipótese e, se ela existe, a influência em questão provavelmente é pequena. Um suplemento alimentar de vitamina D a suprimiria. Mas este exemplo ainda é pertinente: se queremos demonstrar que a diferença genética entre brancos e negros não tem nenhuma incidência sobre a sua média de inteligência, é preciso eliminar todo caminho causal que leve das suas diferenças genéticas à inteligência - e é isso que é totalmente inverossímil. Em dez minutos posso imaginar dez deles, para os brancos e os negros ou para os franceses e os belgas. Seria preciso ter muita confiança na bondade e na vontade anti-racista cruel da Mãe Natureza para acreditar que nenhuma dessas razões se verifique efetivamente ou que, por mágica, todas elas se compensem.
A idéia da «igualdade genética» dos grupos humanos é falsa. E que interesse existe em defendê-la? Qual a relação com o racismo? O racismo seria justificado se, por acaso, os genes que provocam a pigmentação provocassem a falta de vitamina D que provoca o raquitismo que provoca menos inteligência? O nível de inteligência torna-se uma natureza contanto que seja causado pelos genes?
Vão me dizer que não é disso que se fala quando se discute a igualdade genética da inteligência. É verdade; é isso mesmo! A genética real, a de que falo, é uma causa e um conjunto de conseqüências; a de que falamos habitualmente é a genética mítica, aquela em que o gene é a nossa natureza, é o nosso ser, a nossa verdade, a nossa essência; o nosso destino, o inalterável, o irremediável, o intencional por Natureza. Vemos na genética a concretização «científica» da mística ancestral do sangue, da nascença. Esta genética não existe, só existe no espírito dos racistas, dos sexistas, dos especistas, que querem discutir para saber se a natureza dos negros é ou não mais animal que a dos brancos. Podem muito bem continuar discutindo lá entre eles durante séculos. Os negros são animais como os brancos. A inteligência inata não existe. Só existe uma inteligência real, os genes propriamente ditos não são inteligentes, não têm vontade nem intenção, apesar das tentativas obscuras — especialidade dos sócio-biólogos — de lhes dar uma alma.
Eles falam desta coisa dentro da cabeça (...). Qual a relação com os direitos das mulheres ou os direitos dos negros? Se na minha caneca só cabe um quartilho e na sua um litro, não seria maldade da sua parte não me deixar encher a minha quartinha?
Sojourner Truth, feminista negra, numa convenção feminista nos Estados Unidos em 1850, citada em Animal Liberation, Peter Singer
Por que então dão tanta importância à inteligência?
Pela sua importância real, prática? Justificam a ênfase dada a ela dizendo que a força física, hoje, não tem mais muita utilidade. Presume-se que a inteligência torna o indivíduo útil à comunidade, que é recompensada pela consideração social.
Os que estão no alto da escala social são os mais úteis à comunidade? Prefiro inverter a explicação: numa sociedade conflitada, a inteligência é uma arma. Dizem que «a libertação dos oprimidos será obra dos próprios oprimidos» e, infelizmente, há verdade nisso. A libertação dos negros americanos deve muito à sua própria ação, que não existiria se só tivessem a inteligência das galinhas. Do mesmo modo, a idéia de que os negros são menos inteligentes que os brancos serve para desmoralizá-los na luta pela igualdade social.
Tal desigualdade de inteligência, seja «inata» ou «adquirida», seria um má notícia — tornaria mais difícil a luta anti-racista. Mas não a tornaria injusta. A nossa cultura mistura um pouco demais força e direito com respeito. Os negros americanos não são mais escravos, as galinhas ainda são; a inteligência dos negros explica em parte a sua libertação, não a justifica.
Le signe qui montre qu'on a le droit de les manger, d'après Ch. Szlakmann, dans Le Judaïsme pour débutants, éd. La Découverte, 1985.
A inteligência permite «fazer-se respeitar»; mas, sobretudo, tem um papel mágico, como principal sinal de humanidade. Os negros são negros, os animais são animais. E o ser humano tem acima de tudo a sua condição de ser humano. A enormidade do sofrimento e do martírio que os seres humanos infligem hoje aos outros animais é conhecida por todos. É somente graças ao especismo que os seres humanos passam a considerá-la sem importância. É preciso que os animais sejam inteiramente outros; que nós sejamos inteligentes. E o próprio fato de a inteligência ser uma arma de promoção social a destaca como signo: a própria sociedade define a si mesma contra os animais não humanos e a promoção social como prova de humanidade.
Evocam-se muitas razões para justificar o que os seres humanos fazem com os outros animais; razões demais. Para os seus inventores, a verdade a demonstrar é dada com antecedência. O especista evoca-as uma atrás da outra; nenhuma fica de pé. Não importa; em nossa cultura profundamente especista, uma chama a outra e lhe tira a base, sem que ninguém suspeite que o conjunto penda no vazio.
Estas razões não são razões, são sinais. É claro que ninguém se esforça demais para mostrar em que justificam a dominação dos seres humanos sobre os outros. E pouco importa que todas tenham a mesma falha, a de não incluir todos os seres humanos, sob pena de incluir também os não humanos.
Inumeráveis são os sinais. Qualquer característica pode servir, contanto que pareça «nobre» e própria dos humanos. A ferramenta era «própria do Homem» até a descoberta de um pássaro que também a usa. Como possuía o próprio do Homem, declararam que a vida deste pássaro era sagrada como a de um ser humano. Claro que não, estou brincando! Eles entenderam. Ao comer o pássaro, disseram: só os seres humanos fabricam ferramentas. Mas alguns chimpanzés também as fabricam, e este filão se esgotou.
Outro filão: a linguagem. Dizem que os animais não têm linguagem mas, como os cães sabem uivar, explicaram: linguagem articulada. Depois, ensinaram a alguns macacos a linguagem gestual dos surdos-mudos humanos, com sintaxe e tudo o mais (eles são menos dotados do que nós, mas o princípio está lá) e abandonaram também este filão (evitaram de especificar linguagem sonora, porque os surdos-mudos, ao contrário dos autistas, sabem defender-se).
E como a ausência de linguagem justifica o massacre? Explicaram-me que, se um ser não pode dizer que sofre, ninguém pode descobrir. No entanto, todos os mamíferos mostram os mesmos sinais de sofrimento que os humanos; seria espantoso que fenômenos tão parecidos não tivessem a mesma causa. Poucas ciências seriam possíveis caso se exigisse que o seu objeto fosse dotado de palavra. E também: «Se um ser não pode conceituar o seu sofrimento, este não existe, é puramente físico.» As feministas mostraram muito bem que durante séculos as mulheres sofreram em silêncio, porque faltavam conceitos para exprimir o que sentiam. Um passo decisivo para a sua liberação foi conseguir forjar estes conceitos para dizer e pensar o que viviam. Antes disso, o seu sofrimento era «puramente físico»?
Outros critérios: «o animal sabe, o homem sabe que sabe» (Teilhard de Chardin); «o animal não tem consciência de si»; «só os seres humanos têm uma personalidade única». Falso, vago ou os dois, nada disso resiste ao exame científico mais simples. E de qualquer modo, o que isso mudaria? É saber que sabemos, ou a «consciência de si», ou a «personalidade» que dão valor à vida? São esses «não sei quê» — as tais naturezas — que justificam os massacres, tanto das galinhas quanto dos judeus.
Há também o «instinto animal» em oposição à «razão humana». Este modo de colocar o problema testemunha sobretudo a ignorância crassa que os seres humanos têm dos outros animais, do seu conhecimento feito de estereótipos remoídos. Os racistas, em geral, também não sabem nada sobre aqueles que desprezam; mas as fábulas racistas e especistas não passam disso: fábulas, modos de dizer o indizível, a natureza.
Seria bem possível criar as crianças humanas desde o nascimento num tal isolamento relacional e sensorial que não desenvolvessem nenhuma dessas tão nobres qualidades «propriamente humanas». Criadas nestas condições, equivalentes às que sofrem as vitelas, poderiam então sofrer o mesmo destino, «porque foram feitas para isso» («nunca conheceram outra coisa»). Para que se preocupar com o destino desses seres associais, incapazes de falar, de usar ferramentas, sem laços afetivos e que nem sequer sabem que sabem? Se você acha isso escandaloso, concordo com você; mas se você não acha igualmente escandaloso o que fazem aos bezerros, bem, aí você é especista. Não quer que façam isso com os humanos, porque são da sua espécie. Que argumentos então você poderia sustentar a sério contra um racista que recusaria que fizessem isso com os de sua raça?
Para que se preocupar com o destino de qualquer ser? O que importa dizer que devemos nos abster de lhe fazer mal?
Nada, se quiserem. Podem, se quiserem, matar e torturar quem quiserem. Podem decidir só torturar os negros ou os direitistas, se quiserem. Podem decidir torturar-se a si mesmos; mas isso raramente se faz. Por quê? Porque faz sofrer, vai contra os seus próprios interesses.
Evitar fazer mal ao outro é decidir estender a consideração que se tem pelos próprios interesses aos interesses do outro. A ética não passa disso. E o que deve determinar quem terá os interesses considerados? Somente os brancos? Por que os brancos? Somente os seres inteligentes? Ou sociais? Quem leva em conta os próprios interesses não se pergunta se é inteligente ou social. Isso não tem nada a ver com o problema. Fazer o mal faz mal, quer se seja social ou não.
A cada coisa real, suas conseqüências reais. A inteligência de um ser importa para muitas coisas, mas não tem nenhuma relação com o fato de ser grave ou não lhe fazer mal. Então, o que é que importa?
A cada coisa real, suas conseqüências reais. Ao fato de um ser poder sofrer, a sua conseqüência: evitar fazer-lhe mal. Isso independentemente de todas as outras características deste ser. A ética não racista, não sexista, não especista é esta.
Se um ser é sensível, pode sofrer ou ter prazer, o seu sofrimento e o seu prazer têm a mesma importância que o de todos os outros seres. Toda diferença de importância atribuída aos interesses de dois seres é necessariamente arbitrária, já que baseada nalguma coisa sem relação com a razão pela qual se consideram estes interesses, pois esta razão é simplesmente a sua existência.
O sofrimento é sofrimento, o prazer é prazer: eis a única igualdade que me importa. Se as pedras podem sofrer ou ter prazer, devemos levar em conta o seu interesse de não sofrer e de gozar o prazer — quer cada pedra tenha ou não uma «personalidade única». Se as pedras não podem sofrer nem ter prazer, como muito provavelmente é o caso, não há nada a levar em conta.
Na prática, o que fazer? A nós, que não comemos carne, censuram-nos, muitas vezes com um sorriso irônico, por desdenhar as plantas; mas os que exibem tão bruscamente a sua simpatia pelas plantas comem-nas dez vezes mais do que nós, através dos animais que fazem ser criados numa vida de sofrimento e mortos. Não importa; nós não desprezamos nem as plantas nem as pedras. O desprezo é uma atitude racista por si só. O desprezo julga inferior a natureza de um ser; a mim, me importa o real. O caráter sensível ou não de um ser é uma característica real. Assim, me importa saber: quem a possui, quem pode sofrer?
Como saber se as plantas ou as pedras podem sofrer? É uma questão difícil de resolver em termos absolutos, mas na prática é fácil chegar a conclusões simples. Voltarei a isso no próximo IRL, mas todo espírito não especista estará desde já de acordo comigo quanto a isso: a capacidade de sofrer dos pássaros, peixes e mamíferos não humanos é tão verossímil e garantida quanto a dos seres humanos. Isso determina a primeira e mais simples conseqüência: parar de comê-los.
[1] Tradução francesa: La Libération animale, publicada por Grasset, março de 1993.