Resumo de Através dos nossos Olhos Apenas?
Marian Stamp Dawkins é bióloga. Ela é docente e pesquisadora no Departamento de Zoologia da Universidade de Oxford, e está encarregada de um curso de comportamento animal no Somerville College (Oxford). Sua pesquisa atual tem por objeto, notadamente, os fatores de bem- (ou mal-) estar entre os frangos de criação. Ela colaborou em diversas obras consagradas ao bem-estar e ao comportamento animal. No cerne dos seus trabalhos se encontra uma pesquisa sobre a consciência do outro:
Tanto quanto me recordo, tenho estado fascinada pela questão de saber aquilo que se passava no espírito dos outros animais. Numa das minhas recordações mais remotas, há um cercado com gansos, estou sentada ao lado, e me pergunto por que a passagem de um avião voando em baixa altitude parece perturbá-los muito menos do que a mim, sendo que eles deram uma olhada para o céu e viram, pelo que tudo indica, exatamente o mesmo objeto que eu. Eu tinha naquele tempo, como ainda tenho hoje em dia, o sentimento do mistério que encerra o fato de haver nascido num corpo específico, de só ter acesso à própria experiência particular, de não poder atingir a experiência direta de estar em outros corpos, os dos gansos ou os de outros humanos [1].
Marian Dawkins figura entre os que contribuíram para a obra coletiva, dirigida por Peter Singer In Defense of Animals (Em Defesa dos Animais) (1985), em que ela assinou um artigo intitulado «The Scientific Basis for Assessing Suffering in Animals» [2] (A Base Científica para a Avaliação do Sofrimento em Animais). A conclusão desse artigo é característica de sua maneira de pensar:
Em última instância, é preciso que recorramos a uma analogia com nós mesmos, para decidirmos se um outro ser (inclusive um outro humano) sente alguma coisa, uma vez que a nossa própria experiência subjetiva é a única à qual nós temos acesso direto. Mas uma analogia com nós mesmos que consista em considerar os animais como espécies de humanos cobertos de pelos ou de penas é muito diferente e muito mais propícia ao erro do que uma analogia que utilize plenamente o que sabemos da biologia do animal envolvido[...]. A analogia do segundo tipo deve ser elaborada peça por peça (Do que é que este animal gosta? Em que condições goza de boa saúde? Como se manifesta nele o medo ou a frustração?). É preciso trabalhar duro para aí chegar, pois isso exige muita pesquisa fundamental sobre cada espécie de animal que somos levados a abordar. Mas é o único tipo de analogia que nos permite esperar que possamos nos colocar um pouco na pele das outras espécies e começar a ver o mundo não mais somente através dos nossos olhos, mas também através dos delas.
O título do mais renomado dos livros de Marian Dawkins, Through Our Eyes Only? [3] (Através dos Nossos Olhos Apenas?), evoca esta temática por si só. Vindo à luz em 1993, foi objeto de duas reimpressões [4]. Aquilo que segue é um resumo dessa obra (indisponível em língua francesa). Um simples resumo: as idéias e os conhecimentos são os de Dawkins, sem a menor contribuição ou comentário de minha parte. O exercício implica inevitavelmente uma perda de informação, uma vez que foi preciso condensar um livro de 192 páginas.
Em aditamento, encontra-se no anexo, à página 26, o resumo de uma exposição apresentada por Dawkins em março de 2005, tendo por objeto os mesmos temas que esse livro.
Os animais têm pensamentos e sentimentos? É uma questão extremamente difícil de ser tratada com os dados fragmentários de que se dispõe hoje em dia, mas a empresa não é totalmente desesperada.
Este livro foi escrito como se se tratasse de convencer dois tipos de públicos muito diferentes que estudar a consciência animal é, ao mesmo tempo, possível e digno de interesse: por um lado, os que duvidam de que os animais tenham um espírito e, por outro lado, os que julgam evidente que eles têm um.
A consciência é um fenômeno que cada um de nós experimenta vivamente, mas que nos é impossível definir de maneira simples. Saber se há indivíduos conscientes entre outras espécies é de uma importância decisiva para determinar quais são os nossos deveres morais para com os não-humanos. A questão é igualmente central no plano científico. Como sucede que tenhamos uma subjetividade? Por que e como a consciência se desenvolveu ao longo da evolução? Tal é o profundo enigma com que a biologia se defronta. É evidente que é vantajoso para os animais se protegerem contra o que lhes é nocivo. Mas por que é preciso que eles sejam conscientes para se protegerem? No final das contas, nós fazemos muitas coisas inconscientemente. Retiramos as nossas mãos de um forno ardente bem antes de compreender exatamente que os nossos dedos correm o risco de serem danificados. Por que é preciso que a dor faça mal? Por que não basta que os nossos corpos evitem ou limitem os danos, funcionando segundo regras, à maneira de máquinas, sem que nada deva ser conscientemente desagradável?
A seleção natural só pode favorecer a consciência se o fato, para um animal, de estar consciente, desempenha um papel na sua maneira de se comportar. Supor que ele não desempenha nenhum não pode senão deixar incomodado todo aquele que crê na universalidade do darwinismo. Mas tampouco é muito confortável afirmar que ele desempenha um papel, quando não temos a menor idéia de como ele o faz.
Marian Dawkins defenderá que o ponto de vista segundo o qual a consciência afeta o funcionamento dos organismos é o mais plausível, que não há lá uma exceção ao esquema darwiniano, e que se deve conceber a consciência como um fenômeno biológico, cujo estudo depende do método científico. Mas ela não deixa de ser menos um dos problemas mais formidáveis com que os nossos espíritos poderiam defrontar-se. Hoje em dia, ninguém compreende a consciência.
É difícil conceber um assunto que toque tão profundamente em tantas questões capitais. Infelizmente, é igualmente difícil conceber um fenômeno mais árduo de ser estudado. A dificuldade está relacionada com o seu caráter essencialmente privado. É possível saber o que se passa na nossa cabeça, mas jamais é possível saber com certeza o que sentem os outros: eis a razão pela qual tantas pessoas afirmam que o estudo da consciência é impossível.
No entanto, nós nos comportamos sem cessar como se tivéssemos acesso ao mundo interior dos outros, e o mais surpreendente é que esta hipótese parece fundamentada. Nós reconfortamos bebês, escrevemos slogans publicitários, pronunciamos palavras que conseguem acalmar uma pessoa encolerizada... Desafiando a lógica e agindo como se pudéssemos saber o que vivenciam os outros, conseguimos muitas vezes controlar a situação e predizer o que eles vão fazer, o que sugere vivamente que avaliamos corretamente o que eles sentem.
Conseguimo-lo utilizando a nossa própria experiência e supondo que as outras pessoas se nos assemelham em certos aspectos. Fazemos melhor do que isso: levamos em conta as circunstâncias que podem fazer com que um outro difira de nós. Uma pessoa que não gosta de gatos compreende a dor de um velho solitário, cujo gato morreu esmagado.
É certo que é ainda mais difícil compreender um organismo de uma outra espécie do que um velho taciturno. Em princípio, no entanto, a lógica do «similar-mas-diferente», que nos permite penetrar em outros mundos interiores, poderia ainda funcionar. Se nos dermos ao trabalho, descobriremos similitudes que à primeira vista nada têm de evidente. Mas não se deve subestimar a dificuldade. Quanto mais o outro é diferente, tanto mais isso exige esforços no sentido de ver as coisas do seu ponto de vista. Podem ser cometidos erros grosseiros quando se cede à facilidade de crer que os animais são exatamente como nós.
Um elemento que pode sugerir a presença da consciência entre organismos muito diferentes de nós é a complexidade do comportamento. Não se trata de afirmar que todo o comportamento complexo é consciente, mas antes, que a complexidade do comportamento e a aptidão de se adaptar a circunstâncias variáveis fazem parte dos indicadores que assinalam a consciência. A primeira parte da nossa investigação da consciência entre outras espécies vai consistir, portanto, em utilizar o que sabemos do seu comportamento, perguntando-nos se ele pode ser diretamente assemelhado ao de um autômato inconsciente, que funciona segundo uma série de regras, ou se ele é suficientemente complexo e imprevisível para sugerir ao menos a possibilidade de um vislumbre de consciência.
Segundo uma idéia disseminada, os animais obedecem cegamente ao seu instinto: o seu comportamento nada tem de inteligente ou de complexo. Mas quanto mais se estuda o comportamento animal, mais se descobre que as respostas simples constituem a exceção.
Pesquisadores suecos quiseram descobrir como as fêmeas dos tetra-liras escolhiam os machos com que elas se acasalavam. Eles tiveram de se confessar vencidos: nenhum dos critérios físicos ou comportamentais que eles tentaram explicava a escolha. Mas eles constataram que os machos escolhidos pelas fêmeas ainda estavam vivos seis meses após o acasalamento. As fêmeas tinham, portanto, conseguido fazer uma «predição» sobre a esperança de vida dos machos um em frente do outro, e escolhido os futuros sobreviventes como pais para os seus filhotes. Os pesquisadores eram, em contrapartida, incapazes de realizar esta predição ao utilizarem diversos critérios aparentemente pertinentes (infestação por parasitas, reservas de gordura...).
Foi estudado o comportamento dos cervos no outono, quando eles estão competindo pelo acesso às fêmeas. Os rivais se avaliam a partir de uma série de indicadores (entre os quais, a capacidade de bramar por longo tempo em ritmo sustentado), que fornecem uma estimativa de sua forma física. O combate não se trava senão quando os machos, um em frente do outro, são de força comparável e o resultado do combate é incerto. Quando ele é previsível, o mais fraco se retira.
Estes exemplos (e outros, evocados por Marian Dawkins) mostram que o comportamento de muitos animais está longe de ser simples. Eles não se contentam em reagir a uma ou duas características do seu meio ambiente. Eles produzem respostas que exigem uma discriminação complexa entre diferentes estados ou acontecimentos. O seu comportamento pode chegar a ponto de pesquisar e extrair informações complementares do seu meio ambiente para tomar uma «decisão». Mas seria possível que estes comportamentos aparentemente inteligentes não passassem de respostas pré-programadas, que não traduzissem nenhuma compreensão real? Talvez a fêmea tetraz-lira reconheça uma diferença muito sutil entre as cores dos machos, que não tenha sido percebida pelos humanos, e responda cegamente a este indicador?
À hipótese de os animais serem estúpidos só se pode opor com sucesso mostrando-se que eles fazem mais do que responder de um modo automático «congênito» e que eles são capazes de aprender a adaptar o seu comportamento às circunstâncias particulares em que se encontrem. Ter-se-á a prova que se procura mostrando-se que eles vão além das respostas automáticas, e que eles demonstram possuir uma compreensão suficiente do mundo, para serem capazes de manipulá-lo no sentido de atingir os seus próprios fins. Um animal que pode aprender a tornar a sua vida melhor, mudando o seu comportamento, deve ter ao menos uma compreensão mínima da maneira pela qual o seu mundo funciona.
Conhecem-se muitos exemplos em que animais aprendem, memorizam, «avaliam» uma situação, e «decidem» em função desta avaliação. Os cantos de pássaros que nos encantam são, muitas vezes, gritos de defesa do território. Eles dizem «Fora! Aqui é o meu lar!». Cantar custa menos do que se bater, mas o próprio canto toma tempo, em detrimento de outras atividades, como se alimentar. Bruce Falls estudou o canto de uma espécie particular de pardais da América do Norte. São os machos que cantam. Um pardal instalado num território responde ao canto de um estrangeiro, mas não ao de um vizinho. O vizinho, ao contrário do estrangeiro, não é uma ameaça (ele tem o seu próprio terreno). Mas ao se registrar o canto de um vizinho que habita no oeste do território do pardal M, e se difundir o mesmo a partir do leste, então M se põe a cantar. A mudança de origem parece fazer nascer a dúvida sobre o caráter inofensivo do vizinho. O pardal distingue, portanto, os cantos individuais, aprende de onde deveriam vir os cantos conhecidos, e reage de maneira diversa segundo as circunstâncias.
Os ratos não foram exterminados pela massa de veneno espalhada para destruí-los graças à sua capacidade de aprender de seus congêneres e de transmitir algumas das coisas que eles aprenderam a seus filhotes. Foram realizadas experiências em laboratório sobre pares de ratos (A e B). Tira-se o rato A da gaiola e (sem que B possa observá-lo) dá-se-lhe um alimento que ele jamais saboreou, marcado por um odor de cacau, por exemplo. Quando A retorna à gaiola, B se põe a fazer a toalete dele e a cheirá-lo atentamente, sobretudo a boca. Depois se tira B da gaiola, propondo-se-lhe dois alimentos incomuns, um dos quais exala o cheiro do cacau. Ele escolhe aquele com odor de cacau, anteriormente «testado» pelo seu congênere. Em seguida, realiza-se uma seqüência similar, mas desta vez utilizando-se uma bebida conhecida e apreciada pelos dois ratos (água açucarada). Verte-se na bebida de A (enquanto ele está isolado de B) um produto que o torna temporariamente doente. Constata-se que, em seguida, não somente A, mas B (que inspecionou A enquanto ele estava doente) também, recusam a água açucarada. Uma experiência comparável foi realizada com base numa colônia inteira de ratos. Habitua-se os mesmos a serem alimentados com dois tipos de alimentos, X e Y. Depois, uma única vez, contamina-se o alimento X com um produto que os torna temporariamente doentes. Constata-se que, em seguida, o conjunto da colônia recusa o alimento X. Além disso, esta recusa persiste entre as gerações jovens: entre ratos nascidos após o episódio da contaminação. No caso de se tratar de humanos, qualificar-se-ia de cultural esta transmissão de uma interdição dos mais velhos aos mais jovens.
Mark Elgar realizou um estudo sobre os pardais comuns em Cambridge, particularmente sobre o comportamento de um pardal que, quando ele está empoleirado num lugar seguro, percebe alimento (pão) sobre o solo. Nesse momento, ele pode ir comer sozinho, ou lançar chamados que fazem vir outros pardais (tanto mais numerosos quanto o chamado for repetido), com quem ele deverá compartilhar. Mas quando são diversos os pássaros a procurarem o alimento, ao mesmo tempo em que vigiam os arredores com o olhar, há mais chances de um dos convivas se dar conta da aproximação de um predador e alertar os outros. O estudo revela que o comportamento varia segundo as circunstâncias:
- Quanto mais o perigo percebido for significativo (por exemplo, num jardim conhecido por ser freqüentado por um gato), tanto mais o pardal recruta congêneres antes de descer ao solo. (Inversamente, se o perigo percebido é pequeno, o pardal come sozinho).
- No inverno, quando o alimento escasseia, com um perigo igual, um pardal recruta menos congêneres.
- Parece mesmo que é feita uma avaliação grosseira da facilidade de compartilhar, uma vez que, com uma quantidade igual de pão, um pássaro convida menos parceiros quando se trata de fatias inteiras, do que de pedaços menores.
Citar-se-á, enfim, o caso dos vampiros (morcegos da América do Sul), que se alimentam chupando sangue de animais grandes. Estando de volta à colônia, eles podem regurgitar uma parte do sangue recolhido, para alimentar certos congêneres que foram menos felizes em sua busca por alimento. Wilkinson descobriu que eles alimentavam de preferência, por um lado, membros de sua família, e por outro lado, indivíduos não-aparentados que os tinham alimentado no passado. Há cooperação e reciprocidade. Estabelecem-se vínculos entre indivíduos, que permitem contrair dívidas e ressarci-las mais tarde. Os maus pagadores são punidos (eles deixam de ser alimentados). Há aí uma grande distância das respostas simples e automáticas do instinto cego.
Quanto mais se estuda o comportamento dos animais, tanto mais se reconsidera a idéia de que eles nada fazem a não ser responder de maneira simples a estímulos simples. Se a complexidade do comportamento é um dos indicadores da consciência, então devemos deixar aberta a possibilidade de muitos animais serem conscientes.
Este capítulo trata dos vieses que levam a concluir, sem precauções suficientes, que animais são conscientes ou a atribuir-lhes, partindo de bases contestáveis, certas capacidades mentais. Melhor é que se façam as críticas por si mesmo do que esperar que os adversários as façam. Devemos apoiar-nos unicamente sobre dados que resistem a um exame escrupuloso. Às vezes, um comportamento pode parecer mais complexo ou «inteligente» do que realmente é. Há entre nós uma propensão animista que nos leva a interpretar o que nos rodeia como sendo «como nós», inclusive os objetos inanimados, como as bonecas, os barcos ou as montanhas. Não o fazemos conscientemente; se nos acusassem de fazê-lo, negaríamos, mas uma parte de nós realiza esta hipótese com freqüência, e esta propensão se manifesta ainda mais fortemente quando nos defrontamos com animais de comportamento aparentemente complicado. Esta tendência é reforçada pelo fato de os biólogos usarem palavras que, na linguagem corrente, implicam a consciência, tais como «avaliar» ou «decidir». Às vezes eles se dão ao trabalho de precisar que as empregam num sentido técnico – comportar-se «como se» se avaliasse ou decidisse – que não exclui que este comportamento se explica por uma regra simples. (Poder-se-ia, num caso extremo, descrever um termostato como «se decidindo» a aquecer a casa, quando a temperatura cai abaixo de certo patamar). Mas quando um biólogo escreve que um animal «pune os trapaceiros», muitos o compreendem no sentido corrente.
Devemos desconfiar também da nossa tendência de ver sentido e relações em toda a parte, inclusive lá onde eles provavelmente não existem. Contra isso, é preciso armar-se de alguns instrumentos estatísticos, particularmente a noção de probabilidade. Não é suficiente que um animal dê a «boa resposta» num exercício que lhe seja proposto por pesquisadores. Será preciso ainda perguntar-se quantas outras respostas ele teria podido dar nesse contexto. Se as alternativas forem muito pouco numerosas, o resultado será pouco significativo. Da mesma forma, ao propormos a um chimpanzé que reúna símbolos que representem palavras, tendemos a maravilhar-nos se uma vez ele consegue formar uma frase, ao passo que isso não é significativo no caso de se tratar de uma exceção e das suas composições estarem, em sua maioria, destituídas de sentido.
Antes de afirmar que um comportamento prova que animais são conscientes ou possuem uma capacidade mental específica, é prudente submeter-se à navalha de Occam (perguntar-se se a sua atitude não pode ser explicada de maneira mais simples). Particularmente, dois tipos de explicações mais simples devem ser contemplados: «o efeito Clever Hans» e a explicação por automatismos (rules of thumb = regras práticas).
No início do século vinte, um artista alemão, chamado von Osten, apresentava-se com o seu cavalo Clever Hans, um gênio matemático. Clever Hans sabia contar e fazer operações (ele dava a resposta às perguntas formuladas sob a forma de batidas com o casco sobre o solo). Intrigado, um pesquisador de psicologia, Oscar Pfungst, estudou o fenômeno em condições rigorosamente controladas. Ele descobriu que, na realidade, Clever Hans se orientava por sinais físicos muito leves, dados inconscientemente pelo seu dono, indicando quando ele devia começar e cessar de bater. Clever Hans era notavelmente dotado para decodificar as atitudes dos humanos (ele também conseguia fazê-lo quando era Pfungst quem formulava as perguntas), mas ele não sabia contar (ele se enganava quando aquele que formulava a pergunta ignorava a resposta).
Os animais são muitas vezes dotados para interpretar as atitudes dos outros, uma aptidão útil para a sua sobrevivência. Assim, ao aproximarem-se hienas, ora as zebras continuam a pastar tranqüilamente, ora elas fogem. Elas adivinham se as hienas vêm para caçar ou não.
Nos anos 70 e no início dos anos 80, foram anunciados resultados espetaculares a propósito das capacidades lingüísticas dos chimpanzés, com base nos estudos realizados sobre Washoe pelo casal Gardner e sobre Sarah, por David Premack: os macacos não somente compreendiam e utilizavam palavras, mas eles tinham noções de sintaxe (compreender que a ordem das palavras importa para determinar o sentido de uma frase). Mas muitas precauções metodológicas tinham sido negligenciadas. Particularmente, o fato de que os humanos, educando estes chimpanzés, os tinham educado como os seus próprios filhos e desenvolvido fortes expectativas em relação ao seu sucesso «escolar», aumentava entre estes humanos a propensão a interpretar os resultados em excesso. Ele também favorecia, entre os macacos, a aptidão de decodificar as indicações corporais dadas involuntariamente pelos seus educadores, à maneira de Clever Hans. Depois passou a navalha de Occam. Os estudos sobre os chimpanzés foram conduzidos em condições experimentais mais rigorosamente controladas, tendo sido preciso rever os desempenhos reconhecidos aos macacos, diminuindo-os. Particularmente, a sua capacidade de compreender a estrutura de uma frase foi posta seriamente em dúvida.
Von Frisch descobriu em 1973 a «dança das abelhas» e mostrou como ela permitia a uma colhedora indicar às outras, tendo retornado à colméia, em que local e a que distância ela havia encontrado alimento, para que outras pudessem ir coletar do mesmo por sua vez. Mais tarde, descobriu-se que o vigor e a probabilidade de execução da dança davam, além disso, uma indicação sobre a riqueza relativa da fonte. As abelhas que encontraram uma fonte de alimento abundante dançam mais rapidamente do que as que encontraram uma fonte mais escassa, e mais operárias se dirigem para o local indicado pelas primeiras do que pelas segundas.
Não menos notável é o processo pelo qual é fundada uma nova colméia. Chega um momento em que a rainha em exercício deixa a colméia, acompanhada por uma grande parte das operárias, enquanto a outra parte permanece e educa jovens rainhas, uma das quais substituirá aquela que partiu. O enxame que deixou o ninho vai «suspender-se» num galho, enquanto espera descobrir um novo domicílio. Dezenas de abelhas exploradoras partem para explorar as cavidades circunvizinhas e retornam para «fazer o seu relatório», sob a forma, ainda neste caso, de uma dança, indicando a localização da cavidade explorada e cuja intensidade é função do grau de adaptação dessa cavidade às necessidades do enxame. Uma exploradora pode se deixar influenciar por uma outra que dance mais vigorosamente do que ela, partir para explorar a cavidade proposta pela sua colega, e voltar, por sua vez, para fazer o seu relatório. Este processo, que pode durar diversos dias, conduz a uma redução progressiva do número de locais candidatos, até que o consenso se estabeleça sobre um único dentre eles, em direção ao qual o enxame parte para se instalar.
Temos vontade de descrever estes fenômenos, dizendo que as colhedoras ou as exploradoras dizem às outras o que elas viram, que as abelhas sabem quais locais são os melhores, e que as decisões coletivas se apóiam numa espécie de processo democrático. Tudo isso implica um conhecimento consciente entre as abelhas, e uma transmissão consciente de idéias de umas às outras. Mas há uma explicação mais simples. Tomemos, por exemplo, o processo que faz com que os locais ricos em alimento sejam mais visitados do que os locais mais pobres. Von Frisch descobriu que ele se baseava na mediação de abelhas receptoras, que permanecem no ninho e cuja função é de aliviar as colhedoras. Elas estão em condições de comparar o grau de concentração em açúcar das diversas colhedoras. As receptoras se apressam a aliviar as exploradoras que trazem um néctar rico, enquanto as outras precisam esperar. Quando uma abelha é aliviada depressa, ela dança vigorosamente; se ela tem de esperar, ela dança lentamente, ou não dança em absoluto. As outras colhedoras são estimuladas pela dança vigorosa e se dirigem para as melhores fontes de alimento. O resultado é notavelmente eficaz e parece tão complexo, que nos induz a crer que um espírito racional está em ação. Mas de fato ele resulta de uma série de etapas simples, cada uma das quais pode ser uma resposta automática que não requer absolutamente nenhum pensamento. As regras seguidas pelas abelhas podem não passar da obediência cega a uma série de instruções, tais como «Responder mais fortemente às maiores concentrações de açúcar», «Dançar em função do tempo de descarregamento» etc.
Henri Fabre estudou o comportamento de uma espécie de vespas, em que a fêmea escava uma toca, para ali botar o seu ovo, retornando depois regularmente para alimentar a larva. Cada vez que ela traz uma presa, ela começa por colocá-la na borda do buraco, depois entra para inspecionar o ninho e torna a sair, para puxar a presa para dentro. Henri Fabre observou o que se passava se, enquanto a vespa estava no interior, a presa era afastada da borda do buraco. O seu comportamento é invariável, mesmo depois de o acontecimento se ter produzido 40 vezes: ela vai buscar a presa, recoloca-a na entrada, recomeça a inspeção, torna a sair, torna a levar a presa até a borda do buraco, e assim sucessivamente. Ela é incapaz de escapar deste ritual, de cessar de obedecer a uma regra para adaptar-se a uma situação nova [6].
Todos os estudos feitos até agora sobre os insetos sugerem que eles respondem a regras simples e não pensam realmente.
A chave para estabelecer que animais fazem mais do que obedecer a tais regras (e, portanto, para estabelecer que é possível que eles pensem) é estudar como eles reagem em situações novas. Nossa próxima etapa constituirá em mostrar casos em que o comportamento animal parece requerer o pensamento. O pensamento não é idêntico à consciência (pode-se utilizar corretamente regras de gramática sem ter a menor idéia do que são essas regras). Todavia, estabelecer que animais «pensam», que não seguem cegamente regras pré-definidas, é uma das etapas que nos aproximam do objetivo (mostrar que eles são conscientes).
O pensamento pode ser caracterizado por dois atributos: 1) o indivíduo possui uma representação interior do mundo e 2) ele consegue manipular essa representação para conceber o que aconteceria em circunstâncias novas.
Um exemplo clássico é o de um rato num labirinto: se, quando se obstrui o seu caminho habitual, ele consegue encontrar diretamente a sua rota (e não por tentativas e erros), é que ele tem uma representação interior do labirinto e pensa para encontrar o meio de sair do mesmo.
Pensar pode levar a comparar duas representações ou mais, e a tomar decisões sobre a ação a ser praticada, fundamentadas numa espécie de avaliação dos resultados prováveis. Pensar é não somente possuir uma representação interior, mas ser capaz de manipulá-la (considerar o que aconteceria se um elemento mudasse, por exemplo) e comportar-se de maneira apropriada em relação à representação modificada. É esta maneira de ter uma «medida de antecipação» que distingue o pensamento dos automatismos. Um animal que possui uma lista de instruções, por longa que seja, indicando o que é preciso fazer em cada circunstância, não tem necessidade de ter um modelo interior do mundo. Mas um animal que é capaz de ir além da lista pré-implantada e de encarar o inesperado mostra que ele tem a possibilidade de buscar, dentre diversas ações contempláveis, aquela que é a melhor.
As experiências descritas neste capítulo foram retidas por Marian Dawkins porque elas foram construídas de forma a se premunir ao máximo contra as fontes de erro descritas no capítulo 3. O autor relata cada vez em detalhe o dispositivo experimental, as precauções tomadas para se assegurar que o animal não encontrava a boa resposta ao acaso, ou guiando-se por uma coisa diferente da faculdade que se procura estudar, ou ainda, aplicando regras simples [7]. Não podemos, neste resumo, retomar o detalhe de cada experiência, nem evocar todos os exemplos citados.
Uma maneira de «manipular as coisas em sua cabeça» consiste em extrapolar, particularmente para determinar onde um objeto deve se encontrar, ou reaparecer, depois que tenhamos cessado de vê-lo. Num estudo feito sobre pombos, o objeto que desaparecia temporariamente era um ponteiro de relógio. A experiência revelou que os pombos sabiam onde o ponteiro devia reaparecer em função do tempo decorrido desde o seu desaparecimento.
Procurou-se igualmente saber se os pombos possuem ou podem adquirir a noção de seqüência, de ordem entre acontecimentos. Para isso, ensina-se-lhes que para obter alimento eles devem dar bicadas em motivos luminosos na ordem verde-vermelho-azul-amarelo, por exemplo. A experiência é realizada de tal maneira, que os suportes físicos das cores, a sua forma, a sua disposição espacial, sejam muito diferentes em cada teste, de modo que os pássaros não possam servir-se de sua excelente memória visual para responder. O estudo conclui que os pombos possuem positivamente o conceito de seqüência, num nível de abstração elevado, que lhes permite aplicá-lo em situações novas.
Há diferentes graus na posse de noções numéricas. Pode tratar-se somente de uma apreciação grosseira de tamanho relativo. Um pássaro ou um carneiro que, de dois grupos, opta por reunir-se ao mais numeroso, tem este tipo de capacidade, sem saber, para tanto, contar o número de indivíduos de cada grupo.
Encontram-se casos em que um animal mostra uma compreensão do número mais preciso e mais abstrato, sendo que ele consegue aplicá-la em situações diferentes. Marian Dawkins dá dois exemplos disso. O primeiro relata uma experiência em que ratos aprendem rapidamente que é (por exemplo) o sexto túnel que é o bom num conjunto de 12, quando os doze são colocados sucessivamente em posições diferentes (espaçamento variável, em linha, ou em ângulo reto...). O segundo exemplo se refere ao papagaio cinza Alex, educado por Irene Pepperberg. Alex pronuncia e utiliza com conhecimento de causa palavras que designam objetos, substâncias, cores e formas. Foram-lhe ensinados os nomes dos números 2, 3, 4, 5, 6. Ele se mostrou capaz de responder corretamente à pergunta «quanto?», e isso para lotes de objetos que ele conhece, mas também para objetos que ele não conhece, ou ainda misturas de objetos (Se, por exemplo, segura-se na mão três bastões e duas chaves, Alex responde «cinco»).
«Um pássaro que sabe contar? Ridículo!», dirão os céticos. Mas as duas hipóteses em disputa, a saber, «O animal obedece a regras pré-definidas» e «o animal pensa», conduzem a predições diferentes com referência a seu comportamento. Quando foram tomadas tantas precauções quanto possível para verificar que explicações mais simples não funcionavam, então a navalha de Occam nos incita a concluir que os animais pensam, ou pelo menos alguns dentre eles.
Os macacos-vervet são animais territoriais, que vivem em pequenos grupos. Quando um deles vê membros de um outro bando se aproximarem do seu território, ele lança um grito característico «wrrr». Esse grito previne os membros do seu próprio grupo que intrusos estão se aproximando e assinala a estes últimos que eles foram vistos. Ouvindo um «wrrr», os membros dos dois grupos se reúnem e se confrontam. As mais das vezes, depois de se ter fitado intensamente e ter trocado «wrrrs», cada um torna a partir pacificamente do seu lado. Mas às vezes a situação se agrava com atitudes mais ameaçadoras. É então que os macacos lançam um outro grito característico «chutter». Cheney e Seyfarth estudaram uma tropa de macacos «vervets» selvagens e registraram os gritos de um macaco S. Em seguida, eles difundiram por diversas vezes o «wrrr» de S, quando nenhum outro grupo estava à vista. No princípio, os membros do grupo reagiram como de costume, interrompendo as suas atividades para procurar os intrusos com o olhar. Mas a partir da nona vez, eles cessaram de prestar atenção nisso, quando o mesmo grito proveniente de qualquer outro macaco continuava a desencadear o alerta. Cheney e Seyfarth difundiram então o «chutter» registrado de S, e aí os macacos tampouco reagiram. Os «vervets» foram, portanto, capazes de oferecer uma resposta apropriada a uma situação nova (ouvir gritos lançados sem conhecimento de causa). Eles souberam detectar que um indivíduo anteriormente crível não o era mais, e foi efetivamente o indivíduo, e não o grito, que foi reconhecido, uma vez que a desconfiança para com o seu «wrrr» foi imediatamente estendida ao seu «chutter».
Emil Menzel estudou as interações sociais de seis chimpanzés colocados num vasto recinto. Ele se interessou particularmente pela maneira pela qual eles podem utilizar o comportamento dos outros para saber onde há alimento. Para isso, ele esconde frutas no parque e mostra a um único dos macacos (que se chamará de iniciado) onde eles se encontram, enquanto os outros estão encerrados (Naquele momento, o iniciado não pode tocar no alimento. Ele olha simplesmente, depois ele é encerrado com os demais). Em seguida, o grupo de chimpanzés é liberado. A presença do iniciado permite a todos encontrar rapidamente o esconderijo, ao passo que quando nenhum deles o conhece, é só raramente que ele é descoberto. É neste contexto que foram observados comportamentos de «mentira» ou de «engano». A iniciada era Belle. Quando Rock (um macho dominante) permanecia encerrado e ela conduzia os outros ao esconderijo, as relações eram razoavelmente amistosas e cada um tinha o que comer. Quando Rock estava presente, ele batia em Belle ou a mordia e guardava todo o alimento para si. Belle começou por se dirigir cada vez mais lentamente em direção ao esconderijo quando Rock estava presente. Depois ela cessou de indicar onde estavam as frutas, mas dirigiu-se para lá diretamente, se sentou sobre o monte e esperou que Rock seguisse o seu caminho. Mas Rock descobriu rapidamente o estratagema. Logo que ela ficava sentada mais de alguns segundos, ela a fazia retirar-se precipitadamente e se apoderava das frutas. Então Belle tentou parar nas proximidades do alimento, mas não justamente em cima. Rock se pôs a procurar na zona situada em torno dela, até encontrar. Em seguida, Belle passou a parar cada vez mais longe do esconderijo e a esperar que Rock olhasse alhures, para se precipitar para o mesmo. Rock reagiu pondo-se a olhar alhures e mesmo a se afastar, até que Belle se movesse. Se ele tinha a chance, fazendo isso, de se aproximar do alimento, Belle mostrava sinais de nervosismo, que ele interpretava como se dissesse «você arde». Em algumas ocasiões, Belle tentou afastar o grupo do alimento, e depois, enquanto todos estavam ocupados a procurar, correr em direção ao esconderijo. Numa outra série de experiências, Manzel escondeu duas porções de alimento, uma grande e uma pequena, a três metros de distância entre si. Belle conduziu Rock para a pequena e se precipitou em direção à grande enquanto ele comia. Quando Rock começou a ignorar a porção pequena, para conservar o olho sobre Belle, isso a deixou louca de raiva. Está aí um exemplo de dois animais que pensam na maneira de obter o que querem , que inovam, e que encontram a solução apropriada numa escalada em que eles devem resolver problemas de uma complexidade intelectual crescente.
Vimos, portanto, ao longo de todo este capítulo, uma série de comportamentos cuja explicação mais plausível é que os animais pensam.
O pensamento não passa de uma dimensão do espírito. A outra dimensão reside na capacidade de experimentar sentimentos: medo, cólera, dor, felicidade etc. Muitos consideram esta capacidade como sendo ao mesmo tempo o aspecto mais fundamental da consciência e aquele que mais importa no plano moral.
Os animais experimentam sensações e emoções? Para sabê-lo, são necessários métodos diferentes dos utilizados para detectar o pensamento. As aptidões intelectuais são reveladas a partir da capacidade de fornecer respostas certas. Mas não há resposta certa no que se refere às emoções. Os sinais corporais que as manifestam (enrubescer, tremer...) podem ser muito diferentes segundo as espécies e verificar-se difíceis de serem interpretados. Para procurar a maneira de detectar os sentimentos, é melhor partir de idéias gerais sobre aquilo de que se trata.
Para nós, o aspecto essencial de uma emoção é que ela nos importa. Não somos portadores passivos dos nossos sentimentos, simples observadores da sua existência. Estamos envolvidos no que acontece. As nossas emoções fazem com que nos preocupemos com o que advém. Se sentimos alguma dor, importa-nos que ela cesse. Portanto, se queremos saber se outros animais experimentam emoções, devemos procurar se há fatos que indiquem que também eles se preocupam com o que lhes acontece. O fato de não podermos perguntar-lho com palavras não constitui um obstáculo insuperável. Sabemos, por nós mesmos, que a índole de um sentimento poderoso é que ele invade o nosso espírito inteiro, a ponto de nos acontecer de estarmos preparados a fazer «de tudo» para obter o que queremos. Enquanto experimentamos as nossas próprias emoções, o que vêem os outros, do exterior, são nossas ações, o fato de que procuramos obter alguma coisa e que às vezes estamos preparados para fazer grandes sacrifícios para consegui-lo. O equivalente destas ações é observável entre outros animais.
Pode-se formular aos animais perguntas sem palavras: eles estão preparados para fazer esforços, passar tempo, renunciar a uma oportunidade, para obter o que querem? Pode-se medir a intensidade do esforço que eles estão preparados a fornecer, e também fazer com que revelem o que eles preferem entre duas coisas desejáveis. A beleza deste método é que ele é aplicável a praticamente todas as espécies e permite investigar sobre a maioria dos aspectos do seu meio ambiente. É suficiente que se seja bastante engenhoso para adaptar os dispositivos à morfologia de cada animal (os que têm mãos podem acionar alavancas, os peixes podem nadar através de túneis...), e que se tenha o espírito suficientemente aberto para imaginar que um animal pode estar preparado para muitos esforços para obter alguma coisa cujo interesse nos parece incompreensível.
Entre os estudos pioneiros feitos segundo este método, figuram os impulsionados pela Comissão Brambell, instituída pelo governo britânico nos anos 60, para promover o bem-estar dos animais submetidos à criação industrial. Entre as inúmeras recomendações da Comissão, figura esta, referente às galinhas criadas em bateria: o fundo das gaiolas deveria ser feito de espessas espirais de fio metálico (A), de preferência a um fio metálico fino, tecido em malhas cerradas (B). A idéia era que seria mais confortável para as galinhas terem um chão espesso. Em seguida à publicação desta recomendação, Arthur Black e Barry Hughes tomaram a iniciativa de estudar as preferências das galinhas na matéria. Para isso, eles lhes permitiram deslocar-se livremente entre os tipos de solos A e B, anotando de 10 em 10 segundos onde elas se encontravam. Ao contrário do que se esperava, resultou que elas passavam muito mais tempo sobre o solo B, desaconselhado pela Comissão Brambell, e por fim se descobriu a razão disso: a superfície das patas em contato com o solo era mais vantajosa sobre o solo de malhas finas do que sobre o solo mais espesso, permitindo uma melhor repartição do peso do corpo.
Se esta experiência mostra que é possível enganar-se em nossa apreciação a priori das preferências dos animais, ela não fornece para tanto uma imagem correta da opinião das galinhas sobre o seu meio ambiente: enquanto se lhes deixa somente a escolha entre os solos A e B, não se aprende nada sobre o que elas pensam das condições da criação industrial. Permitindo-se-lhes deslocar-se entre os solos gradeados A e B e um solo mais natural C, feito de turfa, de terra ou de cavacos de madeira, é rapidamente este último que é escolhido. Esta preferência por um solo que permite arranhar e tomar banhos de poeira é manifestada inclusive por galinhas que não conheceram senão solos gradeados desde o seu nascimento, quando, com a idade de quatro meses, esta possibilidade lhes é oferecida pela primeira vez.
Vê-se com freqüência os frangos de criação industrial projetarem sobre as suas costas uma poeira imaginária. Se lhes é dado acesso a um solo mais natural, eles se entregam a uma verdadeira orgia de banhos de poeira real, como se eles recuperassem o tempo perdido. Tudo isso sugere que as galinhas desejam muito poder arranhar o solo e tomar banhos de poeira, e esta conclusão se confirma quando elas não podem ter acesso ao solo que elas preferem, a não ser consentindo em fazer um esforço.
Podem-se conceber diversos dispositivos para medir quanto as galinhas estão dispostas a pagar para ter acesso a coisas tais como erva fresca, um solo para arranhar, um lugar para pôr os ovos [8], a companhia de outras galinhas etc. Norma Bubier, por exemplo, utilizou para este fim o fato de que as galinhas não gostam das passagens estreitas. Ela observou que elas estavam, no entanto, dispostas a franquear repetidamente tais passagens para ter acesso a alimento ou a um solo brando, e que as galinhas que estavam a ponto de pôr ovos consentiam em fazer esforços consideráveis para ter acesso a lugares para pôr os ovos. Assim se tem uma idéia da profunda frustração dos milhões de galinhas obrigadas a pôr ovos diariamente em gaiolas que estão desprovidas dos mesmos. Bubier também observou que as galinhas aceitavam pagar certo «preço» para poder tornar a reunir-se a um grupo de congêneres (são animais sociais), mas menos elevado do que o que elas pagam para ter um lugar de pôr ovos, ou um solo que permita os banhos de poeira.
Estas observações – e outras observações similares, feitas a respeito de animais de diferentes espécies – mostram que não somente eles manifestam preferências, mas que eles desenvolvem grandes esforços para obter certas coisas, que eles têm um comportamento muito semelhante ao que provocam entre nós as emoções poderosas, as que fazem com que o nosso espírito seja invadido pela necessidade imperiosa de obter, de realizar ou de evitar alguma coisa.
Mas será este paralelismo entre o comportamento deles e o nosso realmente suficiente para afirmar que eles experimentam, como nós, sentimentos positivos e negativos? Pode-se contentar em definir as emoções em termos de disposição de obter ou evitar alguma coisa? Não é deixar de lado a dimensão mais importante das emoções: as sensações subjetivas de prazer, dor, solidão, alegria etc. As emoções não serão mais do que o que nós fazemos, porque dependem fundamentalmente daquilo que experimentamos? Talvez tenhamos estabelecido que os animais agem como nós, mas não tenhamos respondido à questão decisiva de saber se eles experimentam sentimentos como nós.
Não se ficará surpreso em ficar sabendo que a resposta a esta questão ainda nos escapa. O estudo do comportamento animal não permite estabelecer com certeza que a procura obsessiva por alimento é acompanhada pela sensação de fome, ou que os cuidados proporcionados aos filhotes são acompanhados por amor. O problema é o mesmo que se refere a outros humanos que não nós próprios. Mas, dirão, os outros humanos assemelham-se-nos a tal ponto, que a atribuição de sentimentos semelhantes aos nossos é somente um pequeno passo a ser dado, enquanto que, tratando-se de indivíduos de outras espécies, é um abismo que seria necessário franquear, profundo demais para que permaneça razoável fiar-se no princípio de analogia. No entanto, trabalhos como os conduzidos pelo fisiologista canadense Michel Cabanac sugerem que o salto a ser dado não é tão grande. Esse pesquisador está persuadido de que as emoções têm uma função e que existe uma correlação estreita entre a fisiologia, as emoções e o comportamento (a sensação de fome é uma componente do mecanismo que permite remediar um déficit fisiológico que coloca o nosso organismo em perigo, incitando-nos a procurar alimento).
Cabanac realizou, entre outros, um estudo comparativo das respostas dos humanos e dos ratos às substâncias açucaradas. Para os humanos, tratava-se de atribuir uma nota (um número inteiro, compreendido entre –2 e +2) que exprimisse o prazer ou desprazer que eles tinham em tomar uma bebida açucarada. Cabanac transcreveu sob a forma de um gráfico a maneira pela qual a atribuição de notas variava em função de diversas circunstâncias: por exemplo, a nota atribuída era mais reduzida entre os indivíduos que acabavam de concluir uma refeição, ou que já tinham tomado uma primeira bebida um pouco antes. Para as mulheres, ela também variava segundo a fase do ciclo menstrual.
Em seguida, a mesma questão foi colocada para ratos, não lhes pedindo para atribuir notas, mas medindo a quantidade de líquido açucarado que eles decidiam tomar segundo as circunstâncias. Os gráficos obtidos para os ratos e os humanos foram de uma semelhança extraordinária.
Uma experiência da mesma ordem foi elaborada por Cabanac para revelar as preferências dos ratos e dos humanos com referência à temperatura ambiente (em relação à temperatura do corpo) e as suas reações às mudanças de temperatura. Ainda aí, os resultados se verificaram notavelmente semelhantes.
Poder-se-ia certamente sustentar que os ratos se nos assemelham tanto, que eles são pequenas máquinas que não sentem nada, enquanto nós temos sede ou calor ou frio. Mas a estreita semelhança do comportamento e da fisiologia [9] fazem com que a teoria mais simples, a que requer a introdução de um mínimo de cláusulas especiais, seja que se eles nos são semelhantes no que é observável, eles também o são no que não vemos (a experiência subjetiva).
Neste capítulo, recorremos tão-somente a uma versão mínima da argumentação à base de analogia. Não sustentamos que as outras espécies eram exatamente como nós. Concluímos somente que era plausível que outras espécies tivessem, como nós, estados conscientes, e compartilhassem conosco a dicotomia básica entre os que são agradáveis e desagradáveis. É possível que cada espécie tenha a sua própria distribuição entre o que seja agradável e desagradável, e que, às vezes, ela seja semelhante à nossa e, às vezes, completamente diferente. A natureza exata desta repartição ainda está para ser descoberta.
Tudo o que nos importa, num futuro próximo, é termos estabelecido que seja provável que pelo menos certos animais experimentem emoções e sensações, percebidas ora como penosas ou dolorosas, ora como agradáveis e desejáveis.
Ao longo de todo este livro, as sensações privadas, conscientes, foram claramente distinguidas dos fatos publicamente observáveis, tais como os comportamentos dos animais. Ainda que invisíveis, atividades tais como «pensar» ou «contar» pertencem à segunda categoria, porque os seus resultados são públicos. Assim, se afirmamos que um animal está extrapolando para determinar a posição de um objeto oculto em movimento, podemos predizer o que ele vai fazer (o local aonde ele irá procurar o objeto), se ele realmente estiver efetuando esta operação. Podem ser tiradas conclusões cientificamente válidas sobre os acontecimentos, não-observáveis, que se desenrolam na cabeça do animal, porque captamos o pensamento através dos seus efeitos.
No que se refere à consciência, isto é diferente. A razão pela qual tantas pessoas sustentam que jamais podemos saber se um outro indivíduo experimenta alguma coisa é que a toda a predição que fazemos, supondo-o sensível (ele grita porque o golpe recebido lhe faz mal) se opõe uma predição paralela (o golpe provoca o grito, sem que o indivíduo sinta alguma coisa). Parece impossível distinguir o fato de sentir realmente alguma coisa do de se comportar «como se» uma sensação estivesse sendo experimentada. É por este motivo que o estudo da sensibilidade é muitas vezes considerado como não sendo da competência da ciência: uma teoria que não é estribada por predições não é uma teoria científica.
Para muitos cientistas, há duas espécies de questões: aquelas às quais podemos esperar encontrar respostas, e as outras. E a questão de saber se um outro organismo, que não o nosso, é consciente, é praticamente a única a ser enquadrada na segunda categoria. Pois, na matéria, o obstáculo seria de ordem lógica e não imputável a limites intelectuais ou técnicos, que se pudesse esperar que fossem superados com o tempo.
Marian Dawkins não compartilha este ponto de vista. A distinção entre o sentido privado (suposto imperceptível do exterior) e o comportamento público (testável), que tínhamos admitido até aqui, talvez seja menos sólida do que parece. A presença da consciência é tão indetectável quanto se diz? Um tema evocado ao longo de todo este livro foi que a consciência evoluiu porque ela é, em diversos sentidos, vantajosa para os que a possuem. Numerosos são os zoólogos, psicólogos e filósofos que falaram de «funções» da consciência e especularam sobre as vantagens que ela proporciona. O ponto importante é que se a consciência tem uma função, ela também tem efeitos. Ora, os efeitos são, em princípio, detectáveis. No que se refere à consciência, pode-se sustentar duas posições coerentes (mas de plausibilidade desigual):
- ou afirmar que ela é indetectável porque ela não tem absolutamente nenhum efeito; é preciso então abandonar a idéia de uma função e de uma evolução da sensibilidade e declarar-se epifenomenalista;
- ou considerar que ela interfere no comportamento, que ela é uma componente do mecanismo que o controla. Se a consciência tem uma função, ele deve permitir aos animais fazer alguma coisa de específico, que pode ser detectado. Em compensação, um híbrido das duas posições precedentes – a saber, que a consciência teria uma função, mas que nos seria para todo o sempre impossível detectá-la -, não é logicamente defensável. Mesmo se não podemos decidir com certeza entre as duas teses que permanecem em disputa, a segunda é mais plausível do que a primeira. Bernard Baars, em A Cognitive Theory of Consciousness (Uma Teoria Cognitiva da Consciência) (Cambridge University Press, 1988), sustenta que na maioria dos casos agimos mais eficazmente quando não temos consciência dos nossos atos: um solista interpreta primorosamente uma peça conhecida ao deixar os seus dedos correrem automaticamente sobre o teclado, enquanto o exercício se transforma em catástrofe se, sob a pressão do stress, ele se põe a se perguntar qual deveria ser o próximo gesto. Os processos inconscientes se verificam muitas vezes muito superiores para gerar situações bem-conhecidas e previsíveis. Os processos conscientes são melhores para gerar situações novas ou quando há imprevisibilidade. O fato de conseguirmos identificar circunstâncias em que a consciência é um trunfo sugere que ela não é um «extra» supérfluo.
Ainda não temos uma compreensão precisa dos efeitos da consciência, mas dispomos de fortes indicações quanto à direção em que é preciso procurá-los: as situações novas, de conseqüência imprevisível, aquelas em que se tenta possuir uma medida de antecipação em relação aos acontecimentos, parecem ser aquelas que provocam os fatos mentais conscientes. Estas características estão particularmente presentes nas interações com outros indivíduos. Diversos autores ventilaram a idéia de que as relações sociais são um domínio em que a inteligência se verifica particularmente útil. É lá que se encontram relações de «confiança», «reciprocidade» ou «logro». É vantajoso conseguir prever o que fará um congênere e o que ele faria se as circunstâncias mudassem. A vida social oferece um ambiente continuamente variável, que se tornou complexo pela inteligência dos aliados e adversários com que nele se entra em contato. Mas há outras circunstâncias em que pode constituir uma vantagem avaliar as conseqüências daquilo que se poderia fazer em relação aos acontecimentos subseqüentes, como apanhar peixes, construir barragens sobre rios ou extrair objetos de lugares de acesso muito difícil. Se há alguma verdade em tudo isso, então daí resulta que não há duas espécies de questões: aquelas que se referem ao corpo dos animais (às quais se pode esperar responder um dia) e as que concernem ao seu espírito (às quais não se poderia responder jamais). Pelo contrário, a questão da consciência animal deveria estar firmemente vinculada ao campo da biologia, do qual que ela depende tanto quanto o tema das moléculas que transportam o oxigênio. Se a consciência tem uma função, então o seu estudo pertence inteiramente ao domínio científico.
Façamos o balanço dos dados reunidos neste livro:
- Certos animais têm comportamentos que se explicam melhor ao atribuir-se-lhes um pensamento, uma capacidade de manipular uma representação interna do mundo. Eles têm noções de ordem ou de número, eles avaliam diferentemente a credibilidade de indivíduos diferentes...
- Certos animais agem de forma a obter ou evitar certas coisas de uma maneira muito semelhante à nossa, quando desejamos ou tememos intensamente alguma coisa.
Pode-se certamente estacionar na posição cética e afirmar que, à diferença de nós, os animais fazem tudo isso inconscientemente. É verdade que, logicamente, esta possibilidade não pode ser excluída. Mas a lógica nos diz também duas coisas: 1) que a mesma atitude deveria levar-nos a duvidar igualmente de que os outros humanos sejam conscientes; 2) que é necessário construir uma argumentação especial, no caso de se querer sustentar que comportamentos semelhantes podem estar acompanhados de estados mentais diferentes (presença ou ausência de consciência).
Ao se aceitar o argumento da analogia para inferir a consciência em outros humanos, é difícil que se recuse a atribuir a consciência a indivíduos de outras espécies que apresentam as mesmas similitudes que nós em relação a alguns caracteres decisivos. Vimos que se encontrava entre animais a complexidade do comportamento, a aptidão de «pensar» inteligentemente e atitudes que indicam que o que lhes acontece lhes importa. A conclusão que se impõe, em virtude do princípio de Occam (reter a explicação mais simples), é que esses animais são conscientes.
Aceitar esta conclusão poderia revolucionar em dois planos a visão que possuímos das outras espécies presentes sobre este planeta. No plano moral, isso poderia subverter a nossa concepção da forma pela qual se deveria tratar os animais. No plano científico, isso deveria provocar uma revisão radical do que é uma explicação biológica válida do comportamento animal: se a consciência é um fenômeno biológico, que evoluiu em razão das vantagens que ela proporciona a seus possuidores, então deve estar faltando alguma coisa de muito importante em toda a explicação que não leva isto em conta.
Eu sabia que Marian Dawkins era uma referência em matéria de bem-estar animal. Sem jamais ter lido alguma obra sua (eu só o fiz após tê-la ouvido no último mês de março), eu acreditava conhecer o registro que era o seu: ela fazia parte desses peritos, cujo trabalho consiste em estabelecer métodos e critérios para avaliar a saúde, o stress, as preferências... dos animais. Ela era autoridade nesse campo, por ter estado entre os pioneiros, e pelo fato de se preocupar verdadeiramente em conhecer as necessidades dos animais. É um trabalho importante, quando é conduzido honestamente desta maneira, pois fornece as bases científicas que servem de ponto de apoio para exigir o estabelecimento de normas que tornem menos penosas as condições de vida nos locais de criação.
Marian Dawkins é efetivamente tudo isso, mas descobri, ouvindo-a falar, no dia 17 de março de 2005, na conferência sobre a sensibilidade animal, organizada pelo CIWF, em Londres, que ela também era alguém que tinha uma consciência aguda do formidável problema teórico que constitui o fenômeno da sensibilidade, e de seu interesse prático pela causa animal. Eu estava particularmente receptiva a esta dimensão, porque ela reunia o que David e eu tínhamos tentado fazer passar através do texto redigido para essa conferência e, de maneira mais geral, aquilo em que a equipe inteira dos Cahiers tinha decidido trabalhar desde o número 23. Dentre as notas tomadas no local, durante a sua intervenção, rabisquei «Ela corresponde inteiramente à nossa linha!».
Vou tentar reproduzir aqui alguns elementos de sua conferência, que podem completar ou atualizar o que ela escrevia em Through our Eyes Only? (Através dos nossos Olhos Apenas?). Para fazê-lo, eu me apóio nos meus próprios apontamentos, na exposição redigida por David [10] e nas exposições disponíveis no site do CIWF [11]. Chamo a atenção para o fato de que compreendo mal o inglês oral e que, portanto, uma parte do que ela disse escapou-me completamente.
Sua exposição estava em parte estruturada em torno dos diferentes meios de que se dispõe para determinar exatamente a consciência animal: por um lado, as técnicas para revelar as capacidades cognitivas e, por outro lado, as para revelar as emoções (seja através do estudo de comportamentos que podem manifestar preferências, seja a partir de medidas da atividade cerebral). Cada aspecto estava ilustrado por exemplos. Um deles, particularmente apto a sugerir que os animais sentem a dor e que os seus comportamentos inteligentes estão ligados àquilo que eles experimentam, dizia respeito aos frangos de abate. Havendo saído de viveiros de crescimento rápido, são numerosos os que têm problemas nos ossos e deformações das patas. Quando se lhes dá a escolha entre um alimento colorido de azul, contendo um analgésico, e um alimento colorido de amarelo, que não o contém, constata-se que os frangos mancos escolhem o alimento que contém o analgésico, enquanto os frangos válidos escolhem o que não o contém.
As transparências que passavam em sucessão sobre a tela durante a exposição enumeravam os dados que advogam em favor da inteligência e da sensibilidade dos animais, mas cada um terminava pela mesma questão: «Isto é uma prova da sensibilidade animal?», enquanto oralmente Marian Dawkins mencionava de cada vez o argumento a que se poderiam aferrar os céticos (Certamente, os ratos aprendem, mas os computadores também; sim, há atividade cerebral, mas sabemos que o cérebro participa de ações que praticamos inconscientemente...). Toda a sua intervenção estava estruturada de molde a incitar o público a não subestimar a força que representa hoje em dia ainda a «posição cética» e a não superestimar o que a ciência está em condições de fazer para se lhe opor.
Mais do que o seu livro de 1993, a sua exposição de março de 2005 continha referências à filosofia contemporânea do espírito, a começar por David Chalmers, a quem ela tomou emprestado a expressão «o árduo problema» (the hard problem) para designar a questão da consciência. Ela também chamou a atenção do auditório para uma família de pensadores modernos, reunidos sob o rótulo dos adeptos da teoria HOT (High Order Thinking – pensamento de ordem superior [12]), que defendem a tese segundo a qual os únicos a possuírem a consciência são os que têm um pensamento complexo (um pensamento sobre o pensamento), o que exige a linguagem (Carruthers é um representante dos mesmos), ou que sustentam, como Dennett, que o espírito de um indivíduo que possui a linguagem talvez seja tão diferente quanto o de um indivíduo que não a possui, que é enganoso designar um e outro por este mesmo termo de espírito.
Marian Dawkins, quanto a ela própria, convidava desde o início a distinguir a «consciência fenomênica», a saber, a dimensão básica da sensibilidade (ouvir, ver, ter medo ou sentir dor...), da «consciência de acesso», que permite formas de pensamento elaborado. É a consciência fenomênica que deve ser o nosso ponto de ataque, no que se refere à sensibilidade animal, dizia ela.
Ao longo de toda a sua exposição, Dawkins insistiu no enigma que constituía a consciência. Na parte introdutória, ela dizia:
Creio que a pessoa que melhor formulou o problema é T.H. Huxley, o campeão do darwinismo, que disse: «Isso tem a ver com o sistema nervoso. Mas quanto a saber como uma extremidade de tecido nervoso pode realmente dar origem a uma percepção sensível, a uma experiência sensível, isso permanece um mistério profundo. Há aí algo como que de mágico». E creio que Huxley tinha razão. Mesmo que saibamos hoje em dia muito mais sobre o cérebro do que sabia Huxley, estamos ainda em face do mesmo problema.
A última parte da sua exposição, intitulada «Levar a sensibilidade a sério», se estribava numa transparência projetada sobre a tela, em que se podia ler:
• A sensibilidade é «o problema árduo»: não sabemos de onde ela vem, nem o que ela faz.
• Para avançar, é preciso reconhecer as dificuldades e responder às críticas.
• O estudo da sensibilidade animal é um dos campos mais apaixonantes e importantes de toda a biologia.
Marian Dawkins concluiu dizendo que até que pudéssemos provar cientificamente a existência da sensibilidade animal, deveríamos deixar aos animais o benefício da dúvida e que, de preferência a supor que já sabemos o que se experimenta na pele de um outro ser sensível, deveríamos antes procurar ouvir a voz dos animais.
[1] Marian Dawkins, prefácio de Through our Eyes Only?, p. ix.
[2] «Quais são os dados científicos que permitem detectar o sofrimento entre os animais?». O texto integral deste artigo está disponível em: http://articles.animalconcerns.org/...
[3] Marian Stamp Dawkins Through our Eyes Only? The Search for Animal Consciousness (Através dos nossos olhos somente? Em busca da consciência animal).
[4] A última edição (Oxford University Press) data de 2003.
[5] Os títulos que dei aos capítulos não são os escolhidos por Marian Dawkins, cuja tradução seria pouco explícita.
[6] No dossiê «Comportamento animal, comportamento humano», que veio à luz em Sciences humaines (Ciências humanas) n°19, de julho de 1992, p. 30, descreve-se uma formiga voadora que tem exatamente o mesmo comportamento que a vespa, e em relação à qual se procede à mesma experiência que a de Henri Fabre. Exceto que o resultado é diferente: «Observa-se que a formiga, cujo mecanismo estereotipado foi voluntariamente perturbado, vai então repeti-lo integralmente. [...] No entanto, este joguinho tem um fim: ao cabo de certo tempo, a formiga acaba por recolher a presa diretamente. Ela foi, portanto, capaz de modificar o seu comportamento, para adaptá-lo aos estímulos exteriores, como o fazem os vertebrados.». Esta passagem do número 19 de Sciences humaines, à qual não tive acesso, é citada por Yves Bonnardel, em seu prefácio a Luc Ferry ou le rétablissement de l’ordre (Luc Ferry ou o restabelecimento da ordem), obra coletiva que apareceu em Tahin-party, em 2001: http://tahin-party.org/ferry.html.
[7] Este último elemento é o mais difícil de ser descartado: os pesquisadores devem demonstrar muito engenho para imaginar quais poderiam ser essas regras e conceber o dispositivo de forma que elas não conduzam ao bom resultado.
[8] Um poedouro é um cesto no qual as galinhas vão botar ovos. Ele é o substituto que certas formas de criação oferecem para aquilo que as galinhas fazem em liberdade: procurar um canto tranqüilo e sombrio para construir um grande ninho em que elas botam os ovos.
[9] O corpo dos ratos reage de maneira muito semelhante ao dos humanos em relação à falta ou à adução de alimento; é por isso que eles são muitas vezes utilizados como modelos neste campo, como por exemplo, para os estudos sobre a obesidade.
[12] Expressão devida a David M. Rosenthal.