A primeira edição do Animal Gospel [Evangelho animal] de Andrew Linzey data de 1998 (editora Hodder&Stoughton). Podemos encontrar esta obra (em inglês) publicada em uma edição de 2000 (Westminster John Knox Press, Kentucky, EUA). Agradecemos a Andrew Linzey pela autorização concedida para que pudéssemos traduzir e publicar trechos do Animal Gospel que vocês encontrarão abaixo.
Creio que o Evangelho tem a ver com a maneira como compreendemos e tratamos os animais. Acreditar no Evangelho pode e deve fazer uma diferença em nossas interações cotidianas com outras criaturas. Neste capítulo exponho opiniões pessoais sobre as verdades evangélicas que fortificaram meu engajamento pelos animais durante mais de vinte e cinco anos.
Por que me dirijo em direção a Jesus? Enquanto tantos outros olham em outras direções, por que para mim ele representa uma inspiração na luta pelos direitos dos animais? Por que não Darwin e a história da evolução? Ou Albert Schweitzer e sua noção de respeito pela vida que é permanentemente amplificado? Ou mesmo São Francisco de Assis e sua afirmação que os animais são nossos irmãos e irmãs? Enquanto outras pessoas, cristãs ou não, não vêem a relação, o que me leva a proclamar Jesus Cristo como fonte de inspiração – na verdade como a fonte de inspiração – por uma reconsideração revolucionária do estatuto dos animais?
Não tenho outra escolha, confesso minha fé, noto o que me anima, me inspira e cria em mim um tipo de convicção íntima que estar ao lado de Jesus é lutar contra os maus tratos infligidos aos animais. Eis os meus cinco artigos de fé:
Em primeiro lugar, estar com Jesus [to stand for Jesus] é defender os animais contra todas as concepções puramente humanistas ou utilitárias que fazem deles objetos, mercadorias, recursos à nossa disposição. Penso algumas vezes que a contribuição mais importante do Evangelho para o nosso modo de pensar o mundo resida na simples asserção que não somos Deus. Retomando as palavras de Hans von Balthasar que citei várias vezes: «Com relação à criação, o que é essencial é que saibamos que não somos o Criador». Afirmar que os animais são criaturas assim como nós o somos é rejeitar, de forma definitiva, a deificação de nossa espécie, tão característica das concepções humanistas de nossas prerrogativas sobre as outras espécies.
Com muita freqüência, os cristãos aceitaram a opinião profana comum segundo a qual nós somos os donos dos animais, somos seus soberanos e proprietários – esquecendo totalmente que a dominação permitida ao homem é uma dominação por delegação, na qual devemos nos comportar, face à criação como representantes de Deus, agindo de acordo com a lei divina de amor e de compaixão e não segundo nossos próprios desejos egoístas [1]. Entretanto, quando começamos a questionar o tratamento despótico imposto aos animais – quer seja a matança realizada por esporte, a brutalidade do comércio de exportação ou (para citar o último exemplo da atualidade) o massacre absolutamente obsceno das focas para pegar seus pênis e vendê-los como afrodisíacos na Europa e na Ásia – confrontamo-nos cada vez mais com o dogma humanista: se é uma vantagem para a humanidade, então isso deve ser visto como bom.
Pensar assim – e é incontestável que os cristãos também pensaram deste modo - revela um empobrecimento espiritual fundamental. Pois se os animais são criaturas de Deus, não temos nenhum direito absoluto sobre eles, apenas o dever de cuidar deles assim como Deus o faria. Estar ao lado de Jesus é recusar nossa concepção de nós mesmos como deuses e donos da criação. Devemos honrar a vida reverenciando o Senhor da vida.
Em segundo lugar, estar com Jesus é ser favorável à compaixão ativa com relação aos fracos, contra o princípio da lei do mais forte. E eu não falo deste tipo de gentileza afável que se assemelha freqüentemente à compaixão, mas desta coisa plena de vigor que é um sinal bíblico de regeneração moral. Segundo as Epístolas aos Colossenses, os cristãos se «desnudaram do homem antigo e de suas obras» e «revestiram o homem novo, que se renova constantemente [pelo Cristo] segundo a imagem de seu Criador». E nos pedem de vestirmos «as roupas que convêm aos eleitos de Deus, santos e bem amados: a compaixão, a bondade, a humildade, a doçura, a paciência [2]». São as roupas evangélicas para as pessoas do Evangelho. Com estes pensamentos na alma, não caçoemos nem mesmo ousemos esboçar um sorriso sarcástico na direção das pessoas que sentem os sofrimentos das criaturas de Deus, quer sejam elas humanas ou animais. A verdade do Evangelho é que recebemos da graça divina o poder de sentirmos o sofrimento alheio; que possamos sentir isso é o coroamento do Cristo em nós. É chocante escutar cristãos qualificar com sarcasmo de «sentimentalóides» aqueles que se preocupam com os animais. O que estas pessoas teriam falado sobre a compaixão de Jesus para com todos aqueles que estavam fora do círculo normal das pessoas com as quais era normal se preocupar? Os pobres, os doentes, os marginais e até mesmo as prostitutas e os coletores de impostos. Sabemos o que eles disseram: uma das censuras feitas pelas pessoas religiosas era sobre o fato de Jesus ter amizade com eles [3]. Em nossos dias a união com Cristo implica a expansão de nossa sensibilidade moral a tal ponto que isso constitui uma afronta e uma ameaça para aqueles que detêm o poder, do mesmo modo que a compaixão de Jesus representava uma ameaça para os poderosos de seu tempo. […]
Em terceiro lugar, ter Jesus é defender a inocência dos animais, semelhante à do Cristo, contra o mal intrínseco da crueldade. Vivemos tanto tempo com as histórias evangélicas de Jesus que, freqüentemente, somos incapazes de ver como sua vida e seu ministério identificam-se com os animais. Ele nasceu na casa do carneiro e do boi. Seu ministério começou no deserto «entre os animais selvagens [4]». Sua entrada triunfal em Jerusalém foi feita sobre um animal de carga [5].
Segundo Jesus (podemos deduzir), é permitido «fazer o bem» durante o Sabbat, inclusive para socorrermos um animal que tenha caído em um buraco [6]. Até os pardais, que eram vendidos por alguns centavos, no tempo de Jesus não são «esquecidos por Deus». A providência divina se estende a toda criação, e a glória de Salomão e de toda sua obra não pode ser comparada à da flor de lis nos campos [7]. Deus cuida tanto de sua criação que até as «raposas têm tocas e os pássaros do céu têm ninhos», ainda que «o Filho do Homem [não tenha] um lugar para repousar a cabeça [8]»
Mas a identificação mais significativa é a do Cristo ao «Cordeiro de Deus [9]». Como notou o cardeal Newman em um sermão de 1842, as Escrituras comparam Cristo a um animal humilde e sem defesa. Explorando esta metáfora, ele chegou a postular que a inocência dos animais assemelha-se à do Cristo e afirmou que a crueldade praticada contra todos os inocentes – sejam estes crianças ou animais – equivale moralmente a exercê-la contra o próprio Cristo.
O sofrimento animal representa o sofrimento inocente, desmerecido de Cristo. Os Cristãos cujos olhares focalizam o horror da crucificação deveriam ser capazes de compreender o horror do sofrimento inocente. Tal sofrimento, seja ele dos membros mais fracos da comunidade humana ou dos animais, clama ao céu por julgamento e redenção. A cruz de Cristo engloba o sofrimento de toda criação; nossa sensibilidade a este sofrimento é um teste de papel “tournesol” [10] que evidencia nossa qualidade como discípulos cristãos. Afirmo que qualquer teologia que nos insensibilize com relação ao sofrimento não pode ser uma teologia cristã.
Em quarto lugar, estar do lado de Jesus é ser favorável a um sacerdócio de reconciliação de toda criação, contra os poderes da escuridão, representados em parte, pelo caráter destruidor da tecnologia humana. «Pois, escreveu Paulo, Deus quis que toda plenitude habitasse nele; ele quis reconciliar tudo consigo mesmo, tanto o que está sobre a terra como o que está nos céus, fazendo a paz através de si, pelo sangue de sua cruz [11]».
No passado, os cristãos nunca tentaram saber como poderiam compartilhar este sacerdócio da reconciliação e, em particular, o que seria necessário fazer neste contexto cósmico. Mas uma coisa é clara: o que aconteceu na cruz possui um significado cósmico. As Epístolas aos Colossianos e aos Efésios não podem ser lidas como a afirmação de uma teologia puramente antropocêntrica. Somos convidados a examinar onde a criação ainda não está reconciliada com Deus.
Atingimos aqui uma nova cruzada onde os caminhos dos cristãos e dos não cristãos se separam. Para estes últimos, não houve queda, nem de humanos nem do que quer que seja. O mundo simplesmente é «como ele é» e nós devemos estar reconciliados com ele tal como ele é. Mas o verdadeiro evangelho diz que não devemos aceitar o mundo como ele é. Nós devemos distinguir a criação da natureza. O mundo da natureza é ainda inacabado. Na prática isso significa que os cristãos não podem simplesmente deduzir do mundo que ele será como ele é ou o que ele deveria ser.
Este ponto de vista é absolutamente fundamental para todos aqueles que querem explorar os animais (infelizmente tanto os cristãos quanto os profanos) e que estão dispostos a considerar o mundo como um manual de moral, de modo que os humanos tenham direito de imitar todas as relações de subordinação, de indiferença ou de parasitismo que eles possam encontrar. Entretanto a verdade evangélica é que a história de Jesus não é a história do Cristo nosso Predador. O mundo da predação e de todo sofrimento e a morte que o acompanham se erguem contra o Evangelho do amor de Deus.
Os cristãos encarregados do sacerdócio de reconciliação de toda criação devem se tornar símbolos credíveis do Evangelho ao qual todas as criaturas aspiram. Isto significa que, por mais irreconciliável que a natureza possa parecer, os cristãos não podem invocar «a antiga natureza» para justificarem a exploração atual; mas o inverso deve ser feito. Devemos lutar contra os poderes que exploram ou degradam as criaturas de Deus - em particular nosso próprio poder tecnológico que reduz os animais a mercadorias ou a coisas.
A destruição automatizada, institucionalizada, rotineira de milhares de criaturas que acontece a cada ano, para a alimentação, para a obtenção de lucro, para a ciência e o esporte nos leva a perguntar se os cristãos perderam a consciência da realidade do mal. Os direitos dos animais são um combate espiritual contra as forças da crueldade e da morte.
Enfim, estar do lado de Jesus é ser favorável à justiça de Deus e à liberação final de toda criação, é ser a favor do fim da servidão da corrupção, contra o desespero moral e a prostração que caracterizam nosso tempo.
Eu não acredito na «autonomia da ética». Pois esta não pode estar dissociada de uma visão teológica. E sem essa, a ética morre. Nas crises ecológicas do nosso tempo, nós os humanos, estamos aprendendo essa dura lição que nos traz conseqüências incalculáveis (em termos de sofrimento apenas) para o mundo não humano. Acreditar em Jesus é acreditar que o universo é amado e abençoado por Deus. O universo não é perfeito, mas ele está no caminho da reconciliação e será finalmente redimido [redeemed]. Toda criação geme e sofre, esperando a revelação que virá dos filhos de Deus que a ajudarão a liberar-se da servidão e da vaidade [12].
Para mim, não há tarefa que se assemelhe mais à do Cristo do que a de liberarmos a criação desta servidão, «pois nesta esperança somos salvos». Estar com Jesus é entrar nos objetivos de Deus que englobam bem mais do que a salvação da humanidade, por mais vital que esta seja, mas não apenas para a humanidade.
Quando a imagem divina, ainda que desfigurada pela violência e o pecado humanos, é renovada através do Cristo, novas possibilidades se abrem para a criação. Cuidar dos animais, salvá-los de nossa impiedade e de nossa avidez é uma tarefa evangélica, pois proclama o Evangelho. O Evangelho baseia-se na lealdade e na justiça de Deus que, contra todas as aparências, não nos abandonará – nem a nós nem à criação. E é por isso que precisamos de mais, de muito mais «sentimentalismo» com relação aos animais. A condição deles está inextricavelmente ligada à nossa plena humanização em Cristo.
Estas palavras podem parecer, em nossos dias, credulidades. Para dizer a verdade, vários cristãos abandonaram a idéia evangélica de redenção de toda criação. O máximo que são capazes de imaginar é uma humanidade salva e melhorada; o resto da natureza (como ela é) é o melhor que cada um possa imaginar que seja. Caricaturando um pouco esta posição (apenas um pouco): Cristo pode apenas conseguir realizar a tarefa da redenção da espécie humana. E, brincando, eles acrescentam que o paraíso teria que ser muito grande para conseguir conter todos os animais.
Mas a questão verdadeira não é saber se nossa representação do paraíso é bastante grande, mas de saber se nossa visão de Deus o é. A verdade é que um novo céu e uma nova terra que não possam englobar a redenção de todas e de cada uma das criaturas que sofrem, não são bastante grandes para o Deus de justiça no qual os cristãos crêem. Se, segundo os termos de Michael Ramsey, «Deus é parecido com Cristo, e nada há nele que não seja parecido com Cristo [13]», é inconcebível que Deus, o Pai, possa ser menos misericordioso que o Filho.
Recentemente, o diretor do Expository Times me acusou de «incapacidade de enxergar as realidades do mundo natural [14]». Ingenuamente eu compreendi o que ele disse como um elogio até que um colega me esclareceu. Ser incapaz de enxergar as realidades deste mundo me parece ser o ponto de partida necessário para o cumprimento da ética cristã.
A ética cristã é essencialmente escatológica: ela aponta em direção a um outro mundo além deste aqui. A minha crítica significava que eu não partilhava sua percepção do que é dado por Deus (e, por causa disso imutável) no mundo presente. Nossa fé em Deus é freqüentemente ligada a uma visão do mundo que fixa limites arbitrários ao que Deus realmente pode fazer.
É próprio da «natureza humana» como do resto da «natureza» o fato de termos nossos limites e por isso supomos que Deus não possa, ou não queira ultrapassá-los. A doutrina bíblica da redenção mina os fundamentos de nossas tímidas concepções da providência divina. O Deus de Isaac, de Jacó, de Abraão e de Jesus não é limitado pelo que nós sabemos sobre biologia elementar. Se o que foi revelado em Jesus é eternamente verdadeiro com relação à natureza de Deus, então a mesma mão que cura os leprosos também transforma o universo por inteiro.
A questão «O que somos dentro da criação?» deve ser pensada com urgência. Se os cristãos e as Igrejas pudessem retomar uma nova confiança em sua própria teologia evangélica, poderíamos mostrar a nossos contemporâneos uma visão do que deveria ser a criação e um sentido dos limites morais que lhe correspondesse. Karl Barth escreveu: «Diga-me como está sua cristologia e direi quem você é [15]». Pode ser que o que acreditamos em relação a Cristo seja muito mais importante para o futuro das outras criaturas de Deus do que possamos imaginar.
Isso significa profundamente que os animais não devem ser considerados como mercadorias, como recursos, instrumentos, objetos úteis à disposição dos humanos. Se queremos viver a fundo a teologia real, devemos abandonar as concepções puramente antropocêntricas relativas aos animais. A questão da utilidade que os animais podem ter para nós é totalmente distinta do valor que eles possuem aos olhos de Deus todo poderoso. Afirmar que o valor e o significado dos animais neste mundo possa se reduzir ao valor e significado que têm para os seres humanos é totalmente contrário à teologia. Insisto neste ponto, pois parece que existe uma opinião errada em voga - e ela está particularmente disseminada entre os defensores doutrinais da fé cristã: a opinião segundo a qual a melhor expressão da ética teológica consiste em um humanismo lúcido e bem intencionado. E não é assim. A procura de uma compreensão teológica deve implicar uma ruptura fundamental com o humanismo, profano e religioso. Apenas Deus é a fonte de valor de todos os seres vivos.
As pessoas opõem, habitualmente, a este argumento a idéia que, se for realmente assim, pode-se deduzir que toda criação tem valor, de modo que não podemos dizer que haja mais ou menos valor nos animais ou nos rochedos ou nos vegetais, sem falar dos insetos e dos vírus. Este argumento parece cada vez mais utilizado pelos «ambientalistas» e «pensadores verdes» que desejam recusar aos animais uma consideração moral particular. Eles afirmam que o valor dos animais é, por conseguinte, o que nós lhes devemos e deva realmente ser colocado no mesmo plano que o valor dos outros objetos naturais como as árvores ou os rios. Compreendemos imediatamente como esta idéia se insere bem na visão ecologista das «interdependências holísticas» e nas exortações holísticas para respeitarmos «a terra como um todo». Deus ama a criação inteira de modo holístico, dizem as pessoas [21].
Mas é verdade que Deus ama tudo da mesma maneira? Eu não acredito. A tradição cristã distingue claramente os humanos dos animais e também os animais dos vegetais. Os pensadores que desejaram estabelecer a preeminência dos humanos nas Escrituras simplesmente negligenciaram o modo como os animais existem ao lado dos humanos no círculo da relação de aliança. O espírito é, ele mesmo, o «sopro da vida» (Gênesis 1: 30) tanto dos homens como dos animais. A Tora inclui os animais em sua noção de comunidade moral. Assim, depois de ter percorrido o modo como os animais são especificamente associados, identificados aos humanos, Bath conclui: «O “Tu, Senhor, preservas os homens e os animais”. (Salmos 36: 6) que é um tema que percorre toda Bíblia; e surge de forma evidente quando a criação do homem é classificada no Gênesis 1: 24 com a dos animais terrestres [22]».
Uma outra maneira de criticar meu argumento consiste em afirmar que, ainda que os animais tenham algum valor, este valor é incontestavelmente inferior ao valor especial dos humanos. Mas esta objeção somente alimentaria minha tese. Eu não procuro negar que os humanos sejam únicos e até mesmo «superiores» em um sentido, ou que eles tenham um «valor especial» na criação. Certos defensores profanos dos direitos dos animais argumentaram, é verdade, de forma que parecem eclipsar o caráter único da humanidade. Mas os defensores cristãos dos direitos dos animais não procuram destronar a humanidade. Ao contrário, a tese dos direitos dos animais exige que recoloquemos a humanidade em seu trono.
A questão crucial é: que tipo de rei deve ser recolocado no trono? As asserções de Gummer mostram bem a que ponto a «dominação» chega a significar nada menos nada mais que o despotismo. Mas a regra real da qual somos, segundo o Gênesis, os representantes ou guardiões, não é o regime brutal de um tirano. Deus elegeu a humanidade para representar e realizar a vontade divina e amorosa para todas as criaturas. A humanidade é a única espécie que foi escolhida para tomar conta do jardim cósmico (Gênesis 2: 15). Isso implica ter o poder sobre os animais. Mas a questão não é saber se temos o poder sobre os animais, mas como devemos exercê-lo.
E é aí que atingimos a encruzilhada dos caminhos. Os profanos podem afirmar que o poder é em si mesmo uma justificativa para o uso que nós fazemos dele. Mas os cristãos não são tão livres assim. Nenhuma invocação do poder de Deus pode ser suficiente sem que se faça referência à revelação deste poder exemplificado em Jesus Cristo. Muito do que Jesus disse sobre os escravos, as mulheres ou os animais continua historicamente opaco. Mas conhecemos as grandes linhas ainda que faltem muitos detalhes. O poder de Deus em Jesus se exprime na katabasis, a humildade, o sacrifício de si, a ausência de poder. O poder de Deus é redefinido em Jesus como um serviço concreto e caro que se estende aos que estão fora do circulo normal da consideração humana: os doentes, os pobres, os oprimidos, os párias. Se os humanos devem reivindicar uma supremacia sobre a criação, então esta superioridade tem que consistir em servir. Não pode haver superioridade sem serviço.
Segundo a doutrina teológica dos direitos dos animais, a espécie humana deve ser a espécie que presta serviço – a espécie à qual foi dado o poder, a possibilidade e o privilégio de se doar e de se sacrificar pelas criaturas sofredoras mais frágeis. Segundo Sullivan [23], as igrejas devem recusar «toda asserção de equivalência moral entre os humanos e os animais». Mas, quanto a mim, eu nunca reivindiquei alguma igualdade moral estrita entre humanos e animais. Sempre fiquei incomodado com o ponto de vista de Singer segundo o qual a liberação animal consiste em aceitar uma «consideração igual de interesses» dos animais e dos humanos [24]. Penso que, o que devemos aos animais é mais do que uma igualdade de consideração, atenção ou tratamento. Os pobres, os que não têm poder, os desfavorizados, os oprimidos, não deveriam ter uma igualdade prioritária moral, mas uma maior prioridade moral. Quando nós socorremos os últimos, socorremos Cristo. Seguir Jesus é aceitar o axioma segundo o qual os fracos são moralmente prioritários. Nosso valor especial enquanto espécie consiste em sermos especialmente valorosos para os outros.
A pertinência de tal teologia para os direitos dos animais deveria ser clara. Os leitores terão notado que empreguei aqui a expressão «direitos dos animais» em vez de «bem-estar animal» ou «proteção animal». Certos cristãos consideram ainda a terminologia dos «direitos» como uma importação profana da teologia moral. Eles não têm razão. A noção de direitos foi empregada, pela primeira vez, em contextos explicitamente teológicos. E os direitos dos animais são claramente um problema de teologia moral cristã pela seguinte razão: a escolástica católica rejeitou especificamente e de modo repetido os direitos dos animais. É a tradição e não aqueles que chamamos seus detratores modernos que insiste na pertinência da noção de direitos. O problema se complica em nossos dias, pois, inconscientes quanto à história, os cristãos querem falar francamente dos direitos humanos, mas ficam evasivos quando falamos dos animais.
Para mim, o fundamento teológico dos direitos tem uma grande força de convicção. Deus é a fonte dos direitos; todo debate sobre os direitos dos animais conduz aos direitos do Criador. Por isso em Christianity and the Rights of Animals, eu utilizei o termo feio, mas eficaz: téodireitos [25]. A linguagem dos direitos dos animais conceitualiza o que é objetivamente atribuível ao Criador dos animais. Do ponto de vista teológico, os direitos não são concedidos, ganhos ou perdidos, mas reconhecidos. Reconhecer os direitos dos animais é reconhecer o valor intrínseco da vida dada por Deus. […]
[…] Não há tarefa mais urgente do que tornar nosso sonho ao mesmo tempo realizável e inteligível. E qual é nosso sonho? É um sonho profundamente ancorado na tradição judaico-cristã, um sonho ainda capaz de excitar a imaginação e de reforçar nossa vontade. É um sonho de paz, segundo Isaías, um sonho de um tempo no qual:
O lobo habitará com o cordeiro,
E o leopardo se deitará junto ao cabrito,
O bezerro, o leão novo e o animal cevado[<26> Na tradução de Chouraqui, não se fala de «gado que se engorda»: «Então o lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao pé do cabrito, o touro e o leão comerão juntos, e um menino pequeno os conduzirá». [Ndt]]] andarão juntos,
E um pequenino os guiará.
A vaca e a ursa pastarão juntas,
E as suas crias juntas se deitarão;
O leão comerá palha como o boi.
A criança de peito brincará sobre a toca da áspide,
E o já desmamado meterá a mão na cova do basilisco.
Não se fará mal nem dano algum
Em todo o meu santo monte,
Porque a terra se encherá do conhecimento do SENHOR,
Como as águas cobrem o mar [27].
Tal é então a visão de paz – a paz não somente entre os humanos e os animais, mas também entre todos os animais. O que os autores bíblicos exprimem aqui – e em outras passagens importantes do Gênesis, de Oséas, de Jeremias, de Amós, dos Salmos, dos, Colossenses, dos Romanos, dos Efésios e do Apocalipse – é a convicção que a vontade original de Deus para a criação é a ordem, a harmonia e a paz.
Imagine um mundo diferente: um mundo de coexistência pacífica entre todas as espécies. Um mundo onde haja lugar para todos e onde cada necessidade seja satisfeita. Um mundo pleno de vida, onde cada criatura viva protegida da violência. Um mundo onde os seres humanos reflitam de modo evidente a glória de Deus. Um mundo onde os humanos tomem conta do mundo, sabendo que ele é a propriedade de Deus e por isso um tesouro sagrado. Um mundo onde tudo seja bento e glorifique Deus através da vida. Um mundo transfigurado pela ação de graça do Sabbat, no qual os humanos precedam às outras criaturas somente no culto e na glorificação reconhecida e reverenciosa de Deus. Um mundo onde todas as criaturas, animadas e inanimadas, que sintam ou não, humanas e não humanas, existam em perfeita unidade diante de seu Criador.
Este mundo é aquele descrito no capítulo 1 do Gênesis. Deus cria toda vida, oferecendo a terra para que todas as formas de vida a partilhem (1: 10-25). Os humanos são feitos à imagem de Deus e encarregados de dominar (1: 26-28). Entretanto a dominação não significa a tirania, mas a responsabilidade. Enfim, os humanos recebem ,assim como os animais, a injunção de serem vegetarianos, de viverem sem violência (1: 29-30). Por esta razão, Deus «contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom» (1: 31). Pode ser que o capítulo 1 do Gênesis não seja uma descrição do que foi, mas do que está por vir.
Eis o que é, para mim, nosso sonho. […]
[…] Ainda que a ação do Espírito Santo não dependa das igrejas, e que estas tenham frequentemente contrariado os designos divinos, elas podem – inclusive contra sua própria vontade – mostrar sinais de vida espiritual e ser um agente da graça de Deus. Então eu gostaria de concluir sugerindo algumas medidas que elas podem adotar para apoiar este processo global de transformação espiritual. Três esferas estão implicadas: o culto, o evangelho e o ministério.
Em primeiro lugar, o culto. Talvez alguns não compreendam imediatamente em que sentido o culto cristão possa ter uma importância direta para o futuro da liberação animal. Na verdade esta importância consiste simplesmente no fato dos humanos não serem Deus. Ao celebrarmos o Criador, reconhecemos que somos criaturas. Esta idéia tão simples tem implicações revolucionárias em uma sociedade onde as necessidades, os desejos, as aspirações e ganhos dos humanos são considerados como provas de todo progresso moral. Não podemos e não seremos capazes de resistir aos apelos da idolatria, pelo menos a longo prazo, a não ser que estejamos engajados no culto do único e verdadeiro Deus. Confesso estar de acordo com Malcolm Muggeridge: «os selvagens que se prosternam diante de uma pedra pintada sempre me pareceram mais próximos da verdade do que todos os Einstein ou Bertrand Russel [28]». O ato de celebrar um culto é um ato de reconhecimento de um direito de ordem superior – pois «ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela está [29]».
Todavia o problema vem do fato que grande parte do culto cristão continua sendo fortemente antropocêntrico, quer dizer, centrado nos humanos. Inclusive a própria atividade que deveria nos liberar da preocupação exclusiva conosco, contribui com freqüência para alimentá-la. A razão é simples: o mundo da criação e, em particular os animais, são invisíveis em nosso culto. Adoramos o Criador como se o resto da criação não existisse.
Claro, em um sentido tudo pode ser visto como parte de um culto. Conceitualmente pelo menos, ele nos leva a dirigir nosso olhar além dos confins de nossa própria espécie. Mas a forma, a linguagem e a estrutura da liturgia estão focalizadas em nós, como se fôssemos a única espécie amada por Deus, a única com a qual ele se preocupa. Que ninguém se engane sobre o sentido de minhas palavras: é muito importante, vital, que os humanos orem pedindo perdão, se arrependam de seus pecados e recebam de volta o alimento e a segurança espiritual. Realmente Deus nos renova. Mas às vezes é como se nós adorássemos Deus e tampássemos nossos ouvidos às glorificações mais vastas das criaturas de Deus.
Glorificar Deus não é uma atividade exclusivamente humana. No fundo é o Espírito que ora através de nós. Mas não apenas através de nós. O Espírito que vive na criação inspira as glorificações de todos os seres criados. É tão comum escutarmos estes salmos que falam de forma tão eloqüente da criação que adora, e em seguida voltarmos para nossos cultos tão profundamente centrados em nós mesmos.
O critério do culto não reside somente no fato que nos sintamos alimentados e elevados; ele também está no fato de termos celebrado a criação, de a termos apreciado (no verdadeiro sentido do termo), de nos sentirmos mais entusiasmados com ela, de termos dado graças por sua existência, e de ter feito tudo isso sabendo que nós – assim como toda a criação - somos sustentados pela mão providencial de Deus. Não pode ser algo bom nos abstrairmos da criação no ato de reconhecermos nosso Criador comum.
Há alguns anos, eu pensava que o culto cristão evoluiria inexoravelmente em direção a uma consciência maior do nosso caráter comum de criaturas. Mas agora vejo que isso se produzirá quando houver uma transformação na liturgia: tornando visível o que a liturgia normal torna invisível. Com esse objetivo, comecei a compor orações, litanias, liturgias eucarísticas e serviços para os doentes. Todas essas obras enfatizam precisamente a preocupação de Deus para com todas as criaturas e, conseqüentemente, nosso dever de também cuidarmos delas. Meu livro Animal Rites pode parecer provocante, mas é apenas uma tentativa para insistir no que se perdeu ao longo da história do desenvolvimento litúrgico [30].
Para introduzir os animais no culto, poderíamos até trazê-los a nossas cerimônias. Há alguns anos, eu produzi para a RSCPA um livro de ofício para o bem estar animal [31]. Hoje ele está em sua quarta edição e é usado por inúmeras paróquias que organizam uma vez por ano uma celebração com animais, convidando-os literalmente à igreja, a fim de lembrar aos cristãos que os animais também possuem um Pai no céu. Porque os animais foram excluídos por tanto tempo, fazê-los entrar na igreja tem um significado simbólico evidente. Para alguns padres e paroquianos, claro, este ofício é uma novidade ainda considerada com certo desdenho ou até com sarcasmo. Mas ele pode ter um objetivo vital: fragilizar a idéia que o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó e de Jesus se preocupa apenas com a espécie humana.
Claro que, às vezes, os animais criam certa confusão. Mas trata-se de uma bagunça simbólica. Os animais criam uma confusão em nosso culto centrado em nós mesmos: eles nos oferecem um esboço da criação dando graças, um preâmbulo do Sabbat eterno. Os «cultos animais» ou «ritos animais» são, atualmente, essenciais para reequilibrar a balança: para nos ajudar a melhor percebermos nossa condição comum de criaturas e provocar em nós um sentimento de respeito e admiração pelo mundo que Deus fez.
Alguns cristãos ficam amedrontados com essa evolução, temendo que o «culto animal» se reduza a isso: a adoração da criatura em vez da adoração do criador. Mas, na verdade, é exatamente o inverso da idolatria que temos em mente. Até que possamos operar a ruptura litúrgica libertadora através da qual nosso culto abraçará toda criação, seremos condenados a uma espécie de chauvinismo que perpetue a idolatria humana. Levo este último ponto a sério: não devemos, não ousamos supor que Deus o Criador se preocupa apenas com a espécie humana. Nossos interesses não são em si mesmos os interesses do Criador. Deus é o criador de todas as coisas: se não achamos o modo de mostrar esta verdade em nosso culto, corremos o risco de diminuir o ato do culto divino. Resumindo, nós devemos glorificar a vida por causa do Senhor da vida.
A negligência simbólica das outras criaturas em nosso culto religioso tem por corolário a recusa de suas presenças onde se realiza o culto. Há alguns anos, um importante jornal religioso relatou que, por causa da nova legislação britânica, a destruição rotineira dos morcegos nas igrejas não mais seria legal. Como os morcegos frequentemente fazem seus ninhos nos tetos das igrejas, a legislação incluía, claro, os prédios religiosos, pois eles constituíam um dos raros refúgios que restavam para uma espécie em declínio. Houve uma imensa luta que conduziu à constituição de uma associação de fiéis que se opunha à preservação dos morcegos, e isso revela a que ponto numerosos cristãos estão pouco esclarecidos com relação aos animais [32]. Nenhum dos autores do correio dos leitores perguntou se oferecer um abrigo a criaturas não humanas poderia ser um ato de compaixão cristã. O tema não é insignificante. Muitas igrejas dotadas de vastos terrenos, especialmente no campo, têm uma oportunidade excepcional de contribuir para a preservação das espécies ameaçadas. Na realidade, as igrejas e as catedrais organizam regularmente a eliminação de milhares dos indivíduos de espécies «nocivas», em particular dos pombos, sem mesmo pensar em outros métodos de controle das populações, nem mesmo se perguntam se tal controle é realmente necessário [33].
Devemos então perguntar que tipo de Deus estes cristãos cultuam. Parece que fazem seus cultos a uma divindade unicamente interessada na preservação dos edifícios religiosos, ainda que esta custe a extinção de certas criaturas de Deus.
A segunda esfera que desejo abordar é a do próprio Evangelho. Se o culto cristão é antropocêntrico, a predicação do Evangelho também o é. Já expliquei no capítulo 2 o que a essência deste Evangelho testemunha com relação ao amor de Deus para toda sua criação. Entretanto seria difícil para qualquer pessoa que observa o apostolado cristão crer que é realmente o caso, pois geralmente estes textos fundamentais das Escrituras são interpretados de maneira antropocêntrica. Nas interpretações, não se recorda o amor de Deus pelo mundo, mas seu amor pela humanidade. O fato é que, após mais de vinte anos de sacerdócio cristão eu não me lembro de ter escutado um único sermão sobre o amor de Deus pelo cosmo. A triste verdade é que o amor inclusivo de Deus se tornou uma verdade perdida no apostolado cristão.
E a conseqüência é o empobrecimento do ensino cristão. Lembro-me bem de C.S. Lewis quando disse que um dos primeiros obstáculos para que ele aceitasse o cristianismo foi a aparente anomalia de um Deus que criou um vasto universo, mas se interessou apenas por um planeta. Uma grande parte da proclamação contemporânea do Evangelho é lamentavelmente chauvinista: ela supõe implicitamente que o Deus que nos criou se interessa pelo resto da criação apenas como decoração ou teatro. Isso não torna Deus mais plausível, mas o inverso. Por que Deus teria criado um universo inteiro e, no fundo, seria indiferente a ele?
Compreender a natureza inclusiva e englobadora do Evangelho – da boa nova do amor de Deus - continua sendo um formidável desafio para a Igreja. Uma das primeiras obras de apologéticas que lembro ter lido se intitulava Se o Teu Deus é muito pequeno, de J. B. Phillips. O principal ponto de seu argumento ficou presente em meu pensamento (seu argumento é que tentamos incessantemente limitar Deus, reduzí-lo ao nosso tamanho, fazê-lo menor do que ele é). É a «pequenez» do pensamento cristão com relação ao universo que o torna intelectualmente problemático. Claro que o apostolado cristão deve tratar de modo adequado os grandes temas do pecado humano e da salvação, mas ele não deve nunca supor que Deus se reduz à relação que mantém conosco – como se, quando tratamos desta relação, e de outros temas humanos, tivéssemos dito tudo o que havia para ser dito. O Deus do Evangelho cristão não é simplesmente redutível aos interesses temáticos, necessidades ou ganhos humanos.
Mas o desafio do Evangelho não é apenas intelectual ou teológico. Ele também é pessoal e prático, pois pregar o Evangelho do amor de Deus significa questionar nossa falta de amor assim como nosso desejo constante de nos colocar, nós e nossos desejos, no centro do universo. É surpreendente que, apesar de dois milênios de apostolado cristão, os cristãos (eu também, claro) sejam tão inexperientes e chauvinistas com relação a amar. Mas isso acontece por termos definido o amor humano como o centro mesmo de todo amor, excluindo todos os outros. Claro que o amor por nossos irmãos humanos é de uma importância inestimável, mas não é a única forma de amor possível. O amor de Deus requer um amor que comece a se assemelhar ao amor inclusivo e englobante do próprio Deus. […]
A terceira e última esfera que escolhi abordar é a do sacerdócio cristão. É evidente que um culto amplamente antropocêntrico, com uma predicação antropocêntrica do Evangelho conduz inexoravelmente a uma forma de sacerdócio cristão onde a preocupação concreta com os animais esteja excluída. Muitos acharão extravagante a idéia de que preocupar-se com os animais seja uma forma legítima de sacerdócio cristão.
O fato de acharmos isso extravagante é significativo. Como foi dito no capítulo1, para que o sacerdócio cristão assemelhe-se realmente àquele do Cristo, ele deve seguir o ensinamento do Cristo. Mas o sacerdócio de Cristo, segundo as Escrituras, não se esgota nos cristãos, nem mesmo na humanidade. Quando os primeiros cristãos começaram a pensar sobre o significado da obra de Cristo, foram obrigados a enxergá-la como obra de Deus, mas também enxergar que esta se estendia pelo cosmo. «Pois, escreveu Paulo, Deus quis que toda plenitude habitasse nele; ele quis reconciliar tudo consigo mesmo, tanto o que está sobre a terra como o que está nos céus, fazendo a paz através de si, pelo sangue de sua cruz [34]».
É uma vergonha imensa que tão poucos cristãos tenham entendido o que realmente dizem as Escrituras e tenham colocado no lugar várias outras idéias passageiras. Na verdade, em nossos dias estas palavras nos falam com força, agora que os cristãos estão conscientes da natureza independente da criação. Devemos abandonar a idéia de que tudo o que veio de Cristo seja importante e significante apenas para uma única espécie do universo criado por Deus. Com certeza o sacerdócio cristão é importante para a espécie humana e isso de modo crucial, pois os humanos são a podridão moral do universo. Nossos pecados, nossa violência e nossa maldade clamam ao céu por uma ação eficaz que traga um remédio. Mas ainda que centrado na humanidade, o sacerdócio de Deus em Cristo não está limitado a apenas uma espécie. «Todas as coisas», essa é a grande idéia bíblica que devemos aprender – sim, «todas as coisas» em Cristo.
Eis a base de um sacerdócio contemporâneo que contemple todas as criaturas. Efetivamente, em vez de capitalizarmos o trabalho de reconciliação de Deus através de Cristo, como uma propriedade apenas da espécie humana, deveríamos compreender o objetivo deste trabalho de reconciliação e nos liberarmos – nos tornarmos livres para propor e manifestar este sacerdócio de reconciliação, de solicitude para todas as criaturas. O que é realmente extravagante e perverso é o fato de não haver um sacerdócio para todas as criaturas: a idéia que a tarefa de Cristo seja de amplidão cósmica, mas a nossa seja menor. […]
Pregar o Evangelho sempre teve um aspecto subversivo, qualquer que seja o esforço dos cristãos do establishment para camuflá-lo ou asfixiá-lo. O Evangelho é subversivo, pois ele fala necessariamente de uma ordem diferente da ordem estabelecida, de uma ordem de justiça e de compaixão. E também ou ainda mais – verdadeiro no que diz respeito aos animais do que os negócios puramente humanos. O Evangelho aparece em nosso pensamento quando adquirimos a convicção que nossos julgamentos sobre o que é bem e mal são egoístas ou injustos, quando de repente notamos que, do ponto de vista divino, somos mesquinhos e sem coração. As comunidades de fé engajadas no conceito do arrependimento poderiam nos ajudar a sentir aflição pelas crueldades cometidas contra os animais, mas também a manifestar isso publicamente, nos ajudando assim a mudar nossas vidas.
Mas a esperança do Evangelho consiste em que os gritos do «mudo» são escutados [35], que por mais surdos que sejam os humanos, Deus escuta os gritos das criaturas. E não se trata de uma conjectura vazia. De fato, os cristãos que estão plenamente instruídos com relação à justiça de Deus deveriam tremer quando pensassem no julgamento final. De acordo com uma velha tradição apócrifa, no julgamento final, as criaturas não humanas serão as primeiras a serem chamadas por Deus para «testemunharem» contra cada ser humano [36]. Com a maneira que Deus conta, os últimos poderão se tornar os primeiros de uma maneira que nunca imaginamos antes.
Convém concluir olhando em direção do futuro. O Evangelho é incompreensível se não temos um sentido adequado da escala do tempo de Deus, e na crença em sua justiça suprema. Em realidade, estou cada vez mais persuadido que, sem tal convicção, todo esforço moral será considerado como vão. A esperança evangélica no futuro não é um tipo de extra-opcional, mas o fundamento essencial do esforço moral. Pessoalmente, creio não apenas nesta terra – na beleza e no valor das criaturas de Deus que vivem aqui – mas também na nova terra - e em todas as criaturas salvas, tanto humanas quanto animais que a habitarão. Que as outras criaturas possam não estar presentes em nossa concepção de paraíso é tão lamentável quanto nossa concepção limitada do culto, do Evangelho e do sacerdócio […]
(c) Copyright, Andrew Linzey, 1999.
Andrew Linzey é pastor anglicano. É um teólogo internacionalmente conhecido por seus textos sobre cristianismo e os animais. Ele ensina na Faculdade de teologia da Universidade de Oxford e é titular da primeira cadeira de ética, teologia e bem estar animal de Blackfriars Hall (Universidade de Oxford). Ele dirige o Centre for Animal Ethics de Oxford. Há pouco tempo começou a ensinar ética animal na Graduate Theological Foundation (em Indiana). Andrew Linzey escreveu mais de 180 artigos; ele é co-autor de cerca de vinte livros, dentre os quais figuram:
Animal Rights: A Christian Perspective (1976)
Animal Theology (1994)
Animal Gospel (1998)
Animal Rites: Liturgies of Animal Care (1999)
Gays and the Future of Anglicanism (2005)
Creatures of the Same God (2007)
O Oxford Centre for Animal Ethics, inaugurado em novembro de 2006 foi criado a partir da iniciativa de seu diretor, Andrew Linzey. O projeto é apoiado por uma centena de intelectuais e universitários, dentre os quais está o prêmio Nobel J.M. Coetzee. O centro é uma instituição independente de ensino, pesquisa e publicação sobre a ética animal e tem como objetivo criar um pólo intelectual que trabalhe para a melhoria do estatuto moral dos animais. Para saber mais
[1] Cf. Gênesis 1: 27-30.
[2] Epístola aos Colossianos 3: 9 f e 3: 12.
[3] Evangelho de Marcos 2: 16.
[4] Evangelho de Marcos 1: 13.
[5] Evangelho de Mateus 21: 1-7.
[6] Evangelho de Mateus 12: 10 ff.
[7] Evangelho de Lucas 12: 6 e 12: 27.
[8] Evangelho de Lucas 9: 58.
[9] Evangelho de Jean 1: 36.
[10] Papel que reage à acidez ou alcalinidade mudando de cor ao entrar em contato com a substância a ser testada [Nota do tradutor].
[11] Epístola aos Colossianos 1: 19 f.
[12] Epístola aos Romanos 8: 18-24a.
[13] Michael Ramsey, citado e discutido em John V. Taylor, The Christlike God, SCM Press, Londres, 1992, pág 100.
[14] C. S. Rodd (éditorial), Expository Times, vol. 106, n°1, outubro - 1994.
Fico feliz em expressar minha gratidão a Rodd pelo seu comentário perspicaz e penetrante. Sob sua direção, o Expository Times mostrou uma notável abertura às questões de teologia relativas aos animais.
[15] Karl Barth, Dogmatics in outline, traduzido por G. T. Thomson, SCM Press, Londres, 1968, pág. 66.
[21] Abordo essa questão de forma mais detalhada em: Animal Theology, páginas 32 a 35.
[22] Salmo 36: 6, citado e comentado por Karl Barth, Church Dogmatics, III/I, p. 181.
[23] Louis Sullivan é um antigo secretário do Estado americano da saúde, mais longamente citado por Linzey na parte não reproduzida do capítulo 4 de Animal Gospel por uma intervenção feita em um colóquio ocorrido no Vaticano. (Fonte da citação : Louis Sullivan, citado no National Catholic Repórter, vol. 27, n°6, 30 novembro 1990, página 4.)
[24] Submeti a «tese da igualdade de interesses» de Singer a uma crítica aprofundada no capítulo 2 de meu Animal Theology. Creio que o «paradigma da igualdade» deveria ser substituído por um «paradigma da generosidade» sob uma base cristológica.
[25] Cf. Andrew Linzey, SPCK (Londres) et Crossroad (New York), 1987, capítulo 5 : «The Theos-Rights of Animals».
[27] Isaías 11: 6-9.
[28] Malcolm Muggeridge, Chronicles of Wasted Time, vol. 1, The Green Stick, Collins, Londres, 1972, pág. 123.
[29] Salmos 24: 1.
[30] Andrew Linzey, Animal Rites: Liturgies of Animal Care, SCM Press, Londres, 1999; difundido nos EUA por Trinity Press International.
[31] Andrew Linzey, An Order of Service for Animal Welfare and/or Blessing, RSCPA, Horsham, 1975, pages 1 à 17, disponível na Education Department de la RSCPA.
[32] «Anti-bat campaigners, led by Catherine Ward, who complained about bats in churches of her husband’s benefice in Norfolk, have launched the Movement Against Bats in Churches (Mabic)», Church Times, 9 outubro 1992, p. 1. Para detalhes sobre esta estranha correspondência ver Church Times, 21 e 28 agosto, 11 setembro e 16 outubro. A legislação relativa é o Wildlife and Countryside Act de 1981 que contem algumas disposições de base para a preservação das espécies ameaçadas.
[33] O Dr. I. Cuthbert, um biólogo que aconselha as autoridades locais sobre os pombos escreve: «Ainda que muitos afirmem o contrário, os pombos e seus dejetos não são mais perigosos para a saúde humana do que qualquer outra espécie animal e o são muito menos do que a maioria dos animais. Por isso não está claro porque os pombos não são tolerados nas igrejas, catedrais e demais prédios religiosos e porque não são apreciados por sua graça e comportamentos. Se, apesar disso, as pessoas não desejarem os pombos nos prédios, há muitos métodos eficazes para dissuadi-los de ali ficarem ou para eliminar as razões que os atraem até estes lugares em particular. Dentre os métodos eficazes que podem ser usados, não precisamos usar armadilhas nem machucá-los; podemos usar os picos (que estão disponíveis em várias cores e podem ser simplesmente colados na superfície dos prédios). Os picos (pontas de ferro finas) custam barato, dependendo dos fornecedores que forem escolhidos. O gel contra o pouso não deveria ser utilizado: ele pode ser mortal para os pássaros além de também deteriorar os prédios e seu efeito ser de curta duração. Por causa da deterioração que pode ocorrer ao longo do tempo, ou por causa das instalações defeituosas, as telas devem ser inspecionadas regularmente para libertar os pássaros que eventualmente ficarem presos. Eliminar os pombos é uma perda de tempo e de dinheiro. Por outro lado, não há métodos humanos para eliminar pombos selvagens». Para mais informações entrar em contato com o Dr. I. Cuthbert, Brooside Cottage, Glovers Road, Charlwood, Surrey RH6 OEG. Para saber mais sobre o controle dos nascimentos com o uso de pombais contraceptivos, entrar em contato com The B C Group Trust, PO Box 102, Newmarket, Suffolk CB8 ORU.
[34] Epístola aos Colossianos 1: 19 f.
[35] Referência a esta frase da bíblia: «Abre a boca a favor do mudo, pelo direito de todos os que se acham desamparados». (Provérbios 31: 8) [NdT].
[36] Ver II Enoch (Apocalypse eslavonico de Enoch), capítulos 58-59, citado e discutido em Richard Bauckham, «Jesus and the Animals I: What Did He Teach?», em Animals on The Agenda, páginas 34-35. Este tema também foi desenvolvido em Axel Munthe, The Story of San Michele, John Murray, Londres, 1948.