Propor uma ética global, válida, que leve em conta os interesses de todos os seres sensíveis, tal é o objetivo do anti-especismo. Toda teoria moral deve permitir a distinção de valores essenciais, cuja aplicação é tarefa da ação política a ser desenvolvida. A condição sine qua non da coerência de uma reflexão ética reside na validade das práticas que constituem seu campo de ação.
O engajamento político anti-especista deve permitir concretizarmos, nas esferas pessoal e social, os valores morais fundamentais de não-discriminação dos indivíduos, não importando a que espécie pertençam. A aplicação destes preceitos visa a abolição das práticas sob as quais se mantém a ideologia especista. Trata-se de pôr fim aos atos institucionalizados, que de maneira direta ou indireta são responsáveis pelo sofrimento e pela morte de indivíduos não-humanos.
A prática que efetiva a teoria é a garantia da implantação, no real, de uma filosofia que não se reduz a uma simples elaboração utópica. Ela se orienta sobre vários pólos interdependentes que são tanto níveis de ação no domínio político quanto no social.
Em primeiro lugar, as aplicações concretas do anti-especismo são uma validação da coerência interna de nossas teses, que, por serem legítimas, devem ter um resultado tangível.
No plano pessoal, nossas práticas testemunham a medida de nosso investimento nas idéias anti-especistas. No nível social, é a soma das vontades individuais movidas por uma prática rigorosa que terá as repercussões sobre o consumo e tornará obsoleta a « indústria dos animais », fonte de tantos sofrimentos.
Em termos de estratégia, a atitude coerente dos militantes e dos adeptos do anti-especismo tem uma ação didática, aspecto primordial para uma ética ainda expressa por uma minoria de indivíduos. O pensamento anti-especista tem a função de provocar uma reflexão sobre as práticas, de permitir mudanças. Não aplicar de forma rigorosa as conseqüências lógicas de nossas teses, sob o pretexto de que isto não é o mais importante, é uma mistificação. O prolongamento concreto de nossas idéias por meio da prática é a única maneira de abrirmos as jaulas da estrutura especista.
As vacas, as galinhas, os peixes, não se importam com os discursos feitos sobre eles. Mas têm interesse em não serem mais tratados como produtos de consumo, em não serem mais explorados.
fr|7|(texte original)O princípio da prática anti-especista é simples: se lutamos contra o sofrimento, então devemos parar de consumir todos os produtos que causam sofrimento.
Em primeiro lugar, evitar a carne, claro, mas também o couro. Com efeito, se aceitamos caucionar o sofrimento e a morte de seres sensíveis dos quais utilizamos as peles para usá-las em pedaços, não é lógico recusarmos comer suas carnes, sob pretextos éticos especiais. Os vegetarianos, por razões de saúde, e outros por misticismo podem justificar uma tal atitude. Por outro lado, alguém que tenha posições anti-especistas arruína sua credibilidade ao usar sapatos de couro. De um ponto de vista estratégico, recusar o couro é mostrar que nós não focalizamos nossa atenção na alimentação por interesses estritamente humanos [*]. Da mesma forma que o couro não faz lembrar « sangrento » de um bife, os dois são da mesma natureza. Quanto aos produtos elaborados com leite e ovos, apesar de possuírem uma aparência tão inocente, bem ao contrário, são a causa de muitos sofrimentos. Para que os humanos possam consumir produtos lácteos, as vacas são obrigadas a ter um bezerro por ano, cuja carne será destinada ao açougue. A cada porção de leite corresponde um pedaço de carne.
Sobre os ovos, podemos lembrar que, para se constituir uma criação de galinhas « poedeiras », os pintinhos machos são mortos em condições horrendas.
Seria impossível descrevermos uma lista exaustiva dos múltiplos produtos e atividades que estão envolvidas com a exploração animal. Por isso é necessário que sejamos vigilantes e sobretudo expliquemos para as pessoas as razões de nossas atitudes. Esta tarefa de informar o outro é primordial. Aqueles que fazem comércio da escravidão e do crime ocultam cuidadosamente o que acontece nos bastidores da produção de origem animal.
Para aqueles que consideram ser uma grande frustração suprimir o queijo de sua dieta, ou argumentam que o leite de soja é muito caro, é necessário deixarmos bem claro que a satisfação que sentem ao continuar bebendo leite é uma maldade para as fêmeas de quem o leite é roubado, e isso também alivia a agonia dos filhotes.
Por maiores que sejam os esforços que devamos fazer para mudar nossos hábitos alimentares, eles são minúsculos, se comparados aos sofrimentos dos animais, que não podem se defender face à voracidade sem escrúpulos dos humanos.
Sempre buscamos um jeito de encontrar boas razões para fazermos prevalecer nossos interesses fúteis em detrimento dos interesses vitais dos outros (seres indefesos) Isso se chama « especismo »...
É típico da « proteção animal » ter uma indignação seletiva face aos sofrimentos dos animais não-humanos e assim evitar um questionamento profundo dos comportamentos humanos com relação aos animais. Devemos nos distinguir dessa atitude incoerente.
Em relação aos produtos que podemos obter gratuitamente, a « recuperação », as refeições que tomamos nas casas das pessoas, devemos considerar que o ato de consumir um alimento tem um significado muito mais amplo do que a compra dos produtos em si.
Consumir um produto, pagando ou não por ele, é afirmar uma escolha, é dar uma caução moral ao uso de uma mercadoria. Não podemos ignorar o valor político de nossos atos na esfera social. Nosso consumo deve ser uma marca de nossa contestação política. Recusarmos comer ou usar produtos comuns originados a partir do sofrimento dos animais é um ato de não sermos solidários com a moral especista, que voluntariamente impõe a maldade às outras espécies ou a elas não aplica benevolência, atos estes que negam a própria noção de moralidade.
E se Rogério encontrar um bife ou um pedaço de queijo no meio da noite, em um lugar deserto, será que pode comê-los? Rogério pode fazer o que quiser, este exemplo não tem interesse para a elaboração de uma política geral de recusa dos comportamentos especistas. Não podemos estabelecer uma teoria que, por definição, seja absoluta apenas a partir do estudo de casos raros ou de exemplos inventados que, na prática do dia a dia não ajudem ninguém a administrar as práticas anti-especistas que tentamos propagar. É suficiente sabermos que, em algumas situações particulares, o consumo de produtos animais não pressupõe problemas morais. Mas é uma extrapolação inválida deduzirmos dessa constatação que podemos consumir estes produtos regularmente, sem estarmos rompendo com a atitude anti-especista coerente,só porque em uma situação excepcional poderíamos transgredir a norma.
Do mesmo modo, ainda que modestamente consideremos nossa falibilidade humana, seríamos intelectualmente desonestos se começássemos a construir teorias a posteriori para justificarmos nossas fraquezas individuais.
Na análise de um exemplo especial, é nossa responsabilidade pessoal que é engajada. Toda prática comporta desvios aceitáveis, mas não justifica que os exibamos para garantirmos todos os excessos crônicos, que seriam a conseqüência de uma falta de rigor moral e prova de um frágil investimento nas idéias anti-especistas.
Nenhuma teoria pode reger a totalidade de nossos atos. Nosso livre arbítrio é primordial, mas também é necessário seguirmos uma linha diretiva que não seja elaborada a partir de exemplos com fracas probabilidades e nem com deficiência morais individuais.
Também não é o caso de assumirmos uma posição consensual de meio-termo: devemos fazer o que for necessário para estar de acordo com nossos preceitos éticos, sem concessões, quer isso seja ou não fácil. A complacência não é nossa finalidade, e a demagogia só pode prejudicar nosso propósito.
Um outro obstáculo à aplicação de um veganismo rigoroso reside, para certas pessoas, na vontade de se destacar das pessoas que observam um controle alimentar drástico com a finalidade de pureza pessoal.
O veganismo não deve ser abolido porque alguns lhe dão um valor profano.
Querer se distinguir de outros movimentos consumindo produtos que eles recusam é fazer de um problema moral grave (sofrimentos, vidas perdidas ) uma questão de identidade sem importância, relegando a um plano secundário a verdadeira questão política e estratégica do consumo de produtos animais.
Nossa única motivação deve ser a de libertarmos os animais não-humanos da opressão humana pois esta é responsável pelos piores sofrimentos. A realização de nossa luta depende de nossa determinação. É importante desenvolvermos os fundamentos teóricos da exigência ética fundamental de consideração dos interesses de todos os seres sensíveis. Entretanto, as idéias devem ser seguidas por atos, pois somente idéias não têm utilidade para os animais desprezados. Por isso devemos criticar as práticas que constituem o alicerce da estrutura legitimadora do especismo. Abstenhamo-nos de usarmos os sinais ostentatórios de especismo que são os produtos animais.
Devemos mostrar coerência : disso depende nossa credibilidade.
O anti-especismo não existe, existem apenas provas de anti-especismo.
[*] Para a maioria das pessoas, a alimentação vegetariana é, antes de tudo, associada a preocupações dietéticas. Alguns vegetarianos, ainda que se preocupem com o destino dos animais, pensam que as coisas evoluirão com mais rapidez se apresentarmos argumentos relativos à saúde, pois são os argumentos que tocam mais às pessoas. Isso constitui um impasse. Não podemos alegar que o couro causa câncer aos pés! Mas há uma certeza: o comércio do couro intervém em grande parte para a rentabilização do assassinato do animal. Se parássemos de comer os animais mas continuássemos a utilizar seus órgãos para outros fins, a mesma quantidade de animais seria morta. Os argumentos éticos (se forem aplicados) são os únicos capazes de acabarem com o massacre. A coerência pessoal é indispensável se utilizamos estes argumentos.