Este texto foi redigido em maio de 1992 pelo «Collectif Lyonnais pour la Libération Animale» (Grupo de Lyon pela Liberação Animal), com o apoio dos «Cahiers antispécistes» (Cadernos Anti-Especistas).
Ele foi editado em forma de folder e reproduzido por extenso nos «Cahiers antispécistes».
O humano comete abusos contra os animais desde os primórdios da humanidade e o sofrimento animal é a conseqüência de milênios de atitudes discriminatórias. No mundo ocidental, em particular, os animais não humanos são tradicionalmente vistos como coisas aserem exploradas, frente à maior indiferença em relação a seus interesses.
Esta atitude se tornou corriqueira pelo menos depois que Aristóteles afirma que os animais foram feitos para que os usássemos, e, em seguida, foi apoiado por uma perspectiva religiosa fundamentalmente centralizada no homem. Esta culmina, no século XVII, na doutrina de Descartes, segundo a qual os animais são apenas autômatos, incapazes de pensar e de sentir dor.
E apenas no século passado apareceram os primeiros sinais de um movimento político a favor dos animais. Mas a história da defesa animal mostra até que ponto este protesto nem ousa levar realmente a sério os interesses dos animais, conservando-se essencialmente sentimentalista.
Apenas em 1975 foi lançado um ataque sistemático e inteligível contra os fundamentos da exploração dos animais não humanos, com o aparecimento do livro «Animal Liberation» de Peter Singer, que teve uma grande repercussão e suscitou num debate imediato, apoiando a tese revolucionária que somente uma forma de descriminação arbitrária nos permitiu, até nossos dias, não amplificarmos o princípio de igualdade dos humanos aos outros animais.
O argumento a favor da extensão do princípio de igualdade além das fronteiras de nossa espécie funda-se na mesma lógica que o argumento que se opõe ao racismo, ao sexismo e às demais discriminações arbitrárias entre os humanos. Quando dizemos que todos os humanos são iguais, não queremos fazer referência a uma presumida igualdade real, pois os humanos são incontestavelmente diferentes quanto a seu aspecto e força física, suas capacidades e sensibilidade. O princípio de igualdade dos humanos não é a descrição de uma pretensa igualdade real: ele é uma prescrição de como os seres humanos devem ser tratados.
Se a «fronteira» que determina se devemos ou não atribuir uma consideração igual aos interesses de um ser não pode ser fundada em seu sexo ou na cor de sua pele, como poderia fundamentar-se no fato do ser marchar em pé ou com as quatro patas, ou se tem pêlos ou não? E se o fato de ser mais inteligente não autoriza um ser humano a explorar um outro, como poderia autorizar os humanos a explorarem os não humanos?
De fato, a aplicação do princípio da igualdade pode apenas ser estabelecida onde acaba a apropriação dos interesses, compreendida como capacidade de sentir prazer ou dor. Prolongá-la além deste limite é absurdo; restringí-la aquém será arbitrário. Se um ser sofre, não pode existir nenhuma justificativa moral para recusarmos levar em consideração seu sofrimento.
Independentemente da raça, do sexo e da espécie, devemos tratar com a mesma consideração o sofrimento de todos os seres. Aquele que atribui, em caso de conflito, mais peso aos interesses dos membros de sua raça, é racista. O que atribui, em caso de conflito, mais peso aos interesses dos membros de sua espécie, é especista. A igualdade de consideração não significa tratamento igual: se um animal não sofre pelo fato de não poder sair de um país, enquanto um homem pode sofrer no exílio, o tratamento dos casos será diferente. Mas onde os interesses existem e são análogos, eles devem ser pesados na mesma balança. O interesse de não ser utilizado como cobaia ou de não ser acorrentado durante toda vida em um espaço minúsculo destinado à criação intensiva de gado, de não ser arrancado de sua mãe, é o mesmo para os humanos e os animais.
Toda nossa sociedade está impregnada pelo especismo. As práticas fundadas no consumo dos animais são inumeráveis. Ainda que a preocupação pelo destino dos animais seja mais extensa em nossos dias do que antigamente, o sofrimento deles atinge, de forma incontestável, tanto em quantidade e intensidade, um nível que o mundo ainda não tinha conhecido.
A defesa animal concentrou quase toda sua atenção apenas no problema dos animais de companhia, ignorando geralmente os piores tratamentos, os mais generalizados, aqueles que estão institucionalizados.Geralmente a defesa animal é especista e freqüentemente lesa o interesse daqueles que deveria salvar, de uma forma que julgaria inadmissível caso se tratasse de humanos.
Enquanto que o movimento ecológico chama a atenção sobre certas formas de crueldade como o massacre das focas ou a caça às baleias, outras violências são aceitas e aprovadas pelos mesmos grupos ecologistas que se protegem atrás de noções como o equilíbrio do meio ambiente ou a proteção das espécies em perigo.
Os sofrimentos incomparáveis mais graves, e os que são menos notados, são os que sofrem os não humanos utilizados nos laboratórios e nas fazendas industrializadas. Nos laboratórios, os animais são considerados como meros recursos consumíveis e se tornaram, a tal ponto, objetos que seus urros são denominados «vocalizações» nos boletins científicos. Na França isso envolveria atualmente cerca de oito milhões de animais por ano.
Mas, no que toca o sofrimento animal, a prática central é a criação dos animais para a alimentação. Isso não apenas porque nós somos todos diretamente responsáveis através de nosso consumo cotidiano de carne, mas também pela idéia da vida de um animal contar menos que o prazer de comer um prato; este é o maior obstáculo ao fato de atribuir valor aos membros de outras espécies. E o consumo de carne ultrapassa todas as outras utilizações de animais igualmente pelo número de vítimas que causa. Apenas na França, são cerca de 800 milhões vitimados, isso sem contar os peixes. Freqüentemente, os animais são mantidos em lugares fechados e super lotados, em condições de criação intensiva que causam stress, má formações, comportamentos aberrantes e a frustração de todos seus instintos físicos e psicológicos.
Devido à situação existente, a libertação animal somente pode ser realizada pela ruptura dos modelos que estão em vigor – o primeiro é a idéia de que seja moralmente aceitável comer os outros animais – e a abolição das estruturas atuais fundadas na exploração dos não humanos.
Uma compreensão séria dos fundamentos da libertação animal e a partir da extensão do princípio de igualdade além das fronteiras de nossa espécie é indispensável para qualquer tentativa que seja de influirmos na realidade, evitando manobras que recairiam nos mesmos erros do movimento tradicional de defesa animal.
Desejamos ligar estreitamente a teoria e a prática, fazendo da difusão das idéias uma forma de militância política; tendo como inspiração os princípios liberacionistas, inspiração de um ativismo não violento radical. Acreditamos que a libertação animal dependa de uma transformação da consciência humana e que a claridade ideológica seja essencial ao sucesso político.
E este sucesso apenas será possível graças à existência de um movimento organizado, comparável aos movimentos que lançaram as grandes revoluções intra humanas da história: somente então, serão concretizadas mudanças significativas na vida dos animais não humanos. Trabalhamos para desenvolver este movimento e para atingirmos esse dia em que a opressão dos humanos sobre os outros seres sensíveis terá sido eliminada pela raiz.